Frutos do futuro (Em 27/04/12)


Frutos do futuro
Marcelo Ferreira de Menezes
 

O encardido gorduroso das paredes cor-de-rosa parecia ganhar relevo sob a fraca luminosidade da lâmpada agarrada a um fio empoeirado que descia do teto sem forro e cheio de teias grossas e negras. Era uma sala apertada, de chão de cerâmica batida vermelha, cujos móveis consistiam em um sofá de tecido ensebado, um armário de cozinha amarelo enferrujado com portas empenadas e uma mesa, em volta da qual os dois casais estavam reunidos há alguns minutos.
Aldine tentava controlar a ânsia que fazia seu estômago dar voltas por causa do cheiro de comida caseira feita na banha misturado ao de café de má qualidade e bolor das infiltrações que esboroavam tudo ao redor.
Mais café, Dona Aldine? – a dona da casa ofereceu, num gesto de evidente vergonha pela louça improvisada.
Muito obrigada, Conceição, mas já estou satisfeita – respondeu Aldine, envolvendo com os dedos o copo desses de botequim, fosco de mal-lavado, onde ainda se conservava intacto o líquido preto e já quase frio; ela desejava acabar logo com aquela conversa, ir para casa e tomar um banho com urgência.
A senhora sabe... A gente é pobre, mas tem café ainda no pote. E se o doutor Otávio e a senhora quiser, o João vai na padaria e traz pão, que deve tá saindo um quentinho agora – insistiu Conceição com um sorriso encabulado, embrulhando as mãos no avental encardido e úmido.
Não, Dona Conceição, obrigado, mas nós não queremos dar trabalho – dessa vez foi Otávio quem respondeu. Eu e minha mulher estamos mais interessados em resolver toda essa... essa... situação o quanto antes. Será melhor para todos – e ia apoiar um dos braços à mesa, mas desistiu ao ver uma pequena barata passar ligeira pelo tampo e ganhar a lateral, indo sumir em uma das muitas gretas que a madeira, leprosa de cupim, exibia. Por pouco não a esmagou com seu impecável Armani.
Eu só gostaria de saber, doutor – manifestou-se seu João com algo de desafiador na voz – o que é que o senhor quer dizer com “melhor para todos”? Será que o que é o melhor para o seu filho é o melhor para minha filha?
João! Não fale assim com o doutor! Olhe os modos, homi! – abaixou a cabeça Conceição, apertando bem os olhos com uma das mãos, enquanto, com a outra, apoiava o cotovelo.
Tudo bem, Dona Conceição. Seu João está no seu direito; é pai – disse Otávio. Muito embora meu filho tenha me dito que... foi Valdineia quem o seduziu.
Seu João deu um murro na mesa:
Doutor! Ah, doutor! Nós é pobre, mas é gente decente! Minha filha e todo mundo aqui em casa é temente a Deus e teve educação! Mulher – gritou para Conceição –, traz Valdineia aqui!
Aldine deu um beliscão na perna de Otávio como que o alertando para o fato de que não estavam na Epitácio Pessoa, na Lagoa, num happy hour entre amigos, mas no meio de uma favela perigosa, resolvendo um assunto delicado. Seu coração bateu mais forte.
Valdineia – perguntou seu João quando a mãe trouxe a menina pelo braço até a sala –, é verdade que...
Eu ouvi, papai – a moça magra, morena, de cabelos pretos e longos adiantou-se. Eu não pude fazer nada, pai! Acredite em mim! Ele trancou a porta! Falou que me amava! Eu não tive como sair!
Dizendo isso de um jeito nervoso, trêmulo, voltou correndo e chorando para seu quarto, batendo com força a porta atrás de si.
Aldine tentou corrigir:
Seu João, desculpe meu marido, sim? Estamos aflitos com tudo isso também. Armando, nosso filho, é um rapaz bom. Não estamos aqui para apontar culpados, mas para tentar solucionar o problema. São ambos jovens e têm todo um futuro pela frente.
É, mas é Valdineia quem tá prenhe! – disse decididamente seu João apontando para o lugar onde Valdineia se abrigara. E foi o doutor que o senhor trouxe ali quem fez o exame – apontou para o homem de terno sentado no sofá de tecido ensebado, que, desde que entrara, não participara da conversa.
Seu João, tente entender – recomeçou Otávio. Armando é noivo de uma moça fina da sociedade; nós queremos evitar o escândalo. Além disso, dentro de dois anos, estará formado em Direito. Ele tem planos para o futuro. Em pouco tempo, dedicado como é aos estudos, ele chegará a juiz, como eu. Não vejo motivos para aumentar o sofrimento de sua filha. O senhor, sua mulher e a menina não devem ter ilusões: Armando não irá se casar com Valdineia e está fora de cogitação assumir essa paternidade. Pertencemos a realidades diferentes.
Valdineia ouvia tudo de seu quarto e percebia que aquele era um momento delicado e difícil. Desejava que tudo desse certo. E muitas ideias passaram por sua cabeça depois do que acabara de dizer Otávio.
Mas e minha filha?! Minha filha não tem direito a futuro?! Eu não pus filha no mundo para ser mãe solteira! – demonstrou-se indignado aquele pai.
Aldine, mais uma vez, tentou apaziguar os ânimos:
Seu João, Dona Conceição, nós não queremos deixar sua filha desamparada – e pôs a mão no ombro de Otávio, olhando firme para ele enquanto fechou e abriu devagar os olhos, como que fazendo um sinal afirmativo.
Otávio entendeu; colocou a maleta nas pernas e a abriu. Tirou dela cinco pacotes volumosos de notas de dólar envolvidos por cintas de papel com o timbre do banco e os depositou na mesa.
Seu João olhou para a mulher. Dona Conceição levou a mão à boca e correu para a cozinha, prenunciando um choro.
Seu João – disse pausadamente Otávio –, aqui tem o suficiente para reparar o mau comportamento, digamos assim, se o houve, de meu filho. E o doutor Osvaldo garante que não haverá danos para sua filha. Ela ainda nem entrou no segundo mês. Diga a ele, Osvaldo.
O homem levantou-se do sofá e foi em direção à mesa.
Eu posso lhe garantir, seu João. É só ministrar um remédio, coisa simples, um comprimidinho. Em pouco tempo, estará tudo terminado. Haverá um pequeno sangramento, lógico, mas nada de anormal. É como a regra de todo mês, mais nada. Já fiz isso antes, e nunca tive problemas.
Seu João entrelaçou os dedos atrás da cabeça e viu que aquele era o limite.
Deixe eu falar com Valdineia antes – pediu com resignação na voz.
Todos puderam ouvir, constrangidos, da sala a reação da menina. Mas aquilo não mudaria em nada a decisão que se tomava.
O senhor pode entrar – seu João, com os olhos fincados no chão, apontou o quarto onde a moça se encontrava.
Cinco minutos depois, o médico saiu e fez que sim com a cabeça para Otávio. Seu João ainda com os olhos no chão; depois os subiu para os pacotes de dinheiro em cima da mesa.
Dona Conceição chegou à sala enxugando as lágrimas e foi amparada por Aldine, que mais uma vez quase teve um ataque de ânsia, mas dessa vez com o cheiro de suor exalado por Conceição.
O médico orientou:
A senhora, Dona Conceição, deve colocar esse comprimido... bem... lá. A senhora sabe. Para ajudar no efeito. O correto é isso.
Otávio, colocando seu chapéu, completou:
Recomendo que saiam da cidade. Comecem uma vida nova longe daqui. Para o bem de vocês e da menina. Depois de um tempo, a coisa toda passa. Tudo passa nessa vida, seu João.
Embora tivessem entrado em um acordo, não houve aperto de mãos na despedida. Seu João e Dona Conceição ficaram parados à porta da rua e apenas lançaram um olhar minguado na direção do casal e do homem elegantemente vestidos quando o carro de luxo arrancou.
Já foram? – perguntou Valdineia chegando-se por trás dos dois com um cigarro aceso entre os dedos.
Por um instante achei que não íamos chegar lá. Isso já foi mais fácil, hein, Rosa? – indagou o homem para a mulher que até poucos instantes atendia por Conceição.
É, Francisco – respondeu Rosa para aquele que até então era chamado de João. Esses aí até que pareciam ter o coração mole! A mulher, pelo menos. Cambada!
E quanto foi que deu? – quis saber a moça, dando uma tragada forte e expelindo a fumaça para o alto com sorriso zombeteiro.
O bastante para não nos preocuparmos durante algum tempo – respondeu Francisco. Agora vamos! Temos de deixar esse lugar o quanto antes. Já tem uma dica quente em São Paulo. Vamos dormir hoje num hotel e amanhã partimos para lá. E veja se da próxima vez não dá tanto na vista, Sílvia! – era esse o verdadeiro nome da moça.
Que que eu podia fazer? Três meses trabalhando lá, e o cara nada... Só queria saber de , , ... Tinha que fazer alguma coisa, ué! – devolveu a moça, pondo uma das mãos na cintura com deboche.
Sílvia, você ainda tem que pôr esse comprimido – alertou Rosa. E aqui está sua parte. Vá e não demore. Estamos na Kombi esperando. Lugarzinho imundo! Credo! Que buraco!
A moça entrou na casa e, em sua mente, carregava algo mais do que os pensamentos sobre o que faria com sua parte no golpe.
Vinte minutos depois, o homem e a mulher, estranhando a demora da filha, voltaram à casa. As luzes ainda estavam acesas, mas lá não havia mais ninguém. O pai correu até os fundos; não viu nada; somente escuridão.
Sílvia ouvira muito bem o que Otávio havia dito e, naquele exato momento, decidiu optar por um outro plano: seguir sozinha; ou quase isso.
O primeiro comprimido, que escondera embaixo da língua, já há muito havia cuspido, tão logo o médico saíra do quarto; o segundo, que sua mãe lhe entregara, jogara no córrego ali perto. Agora, embrenhando-se pela mata que fazia fundos ao casebre, tinha certeza de que carregava em seu ventre aquilo que passou a considerar como seu principal e mais valioso investimento para o futuro.