O homem que enganou o Diabo (Em 21/04/12)

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O homem que enganou o Diabo
Marcelo Ferreira de Menezes

Eu havia acabado de entrar em casa. Chovia, embora fizesse uma noite bem quente. Joguei meu paletó sobre as costas de uma cadeira, liguei o rádio, peguei um uísque e me atirei em minha confortável poltrona de couro preto.
Querido? É você? — perguntou minha mulher lá de seu banho.
Sim! — respondi, pensando "E quem mais haveria de ser?".
Já estou acabando! — ela gritou.
Era a noite do dia primeiro de outubro do ano de 1931. Naquele tempo, ainda não havia televisão, que só chegaria até nós dezenove anos mais tarde. Era pelo rádio que ouvíamos as notícias do Brasil e do mundo em casa. E aquele era meu horário de ouvi-las.
Após um forte raio, que deve ter atingido meu prédio em cheio, a energia elétrica acabou por uns trinta segundos, talvez. Quando ela voltou, só não caí porque já estava sentado.
Boa-noite, Adalberto!
De pernas cruzadas e completamente à vontade, um cavalheiro bem-apessoado, de chapéu, elegantemente vestido por um terno preto, sentado na poltrona em frente à minha me cumprimentou sorrindo.
Saltei de minha cadeira e, assumindo minha posição de dono daquele lugar, o enfrentei.
É muita petulância do senhor se aproveitar da falta de luz e entrar assim na casa dos outros! O que diabos o senhor pensa estar fazendo? Ponha-se já para fora daqui ou vou chamar a polícia! Aliás, como foi que o senhor entrou?
Ele apenas sorriu e, com gentileza na voz, como se fosse ele o dono do apartamento, pediu:
Sente-se, Adalberto, sente-se. Temos assuntos, negócios para tratar. Já vou explicar "o que diabos" estou fazendo aqui, ainda que não goste muito de ver meu nome nessa forma tão pouco polida de expressão.
Tinha às mãos uma belíssima bengala de ébano, cujo topo exibia um imenso rubi que cintilava juntamente com o brilho negro e profundo de seu olhar.
Permita-me que me apresente — solicitou.
E ele se apresentou.
Não! — eu disse quase rindo.— A essa hora, depois de um dia duro de trabalho, tudo o que eu menos precisava era que um doido invadisse a minha casa! O senhor está me dizendo que é o Diabo, quero dizer, Satanás? Satã? Lúcifer? O Capeta? Em pessoa?
Qual o problema? — disse se inclinando para frente, apoiando uma mão sobre a outra e ambas em sua bengala.
"Esse tipo de maluco geralmente é inofensivo", eu pensei lá comigo. E resolvi entrar no jogo dele.
Ah, senhor Diabo, seria muito pedir uma pequena prova do que estás aí a me falar?
Prontamente! — respondeu ficando de pé. — Mas esteja preparado.
Mal tive tempo de piscar os olhos e aquele distinto cavalheiro foi substituído por uma figura tão horripilante e que exalava um cheiro tão terrível, que, por alguns segundos, perdi os sentidos. Quando os recobrei, eu estava novamente em minha poltrona; ele, sentado à minha frente; o rádio, ainda dando as notícias.
Mas por que eu?! Por que agora?!
Com respeito à primeira pergunta, porque o senhor prejudicou muita gente com suas mentiras. E, além do mais, adultério é crime até para a lei dos homens, não sabia?
Mas eu sou advogado, o que você queria? — tentei me defender. E você mesmo sabe: a carne é fraca! Aliás, você é que nos tenta!
Nada disso importa. Agora, com relação à segunda pergunta, só pude vir agora porque eu tive muito trabalho hoje. Não é nada fácil ser o Diabo; é preciso muita competência para sair à cata dos que devem. Mas vamos; você é o último do dia e eu sinceramente estou cansado; mereço um descanso.
Nesse momento o terror do inevitável percorreu minha espinha. Mas um outro sentimento tomou de assalto meu espírito: pela primeira vez na vida, eu sentia um arrependimento sincero e desejava nunca ter contado as mentiras que contei, ter feito as trapaças que fiz para ganhar meus casos e, principalmente, desejei jamais ter traído minha linda esposa, que como sempre estava se demorando em seu banho. E esse sentimento me brindou com uma ideia. Imediatamente corri até o rádio e o desliguei.
Vamos fazer um trato — eu propus.
Ai, vocês são todos iguais! Sempre nessa hora pensam em fazer um trato! Na hora da morte...
Não, veja, eu falo sério. Você não tem nada a perder. É uma aposta.
Qual é a aposta? — inquiriu, levantando a sobrancelha esquerda.
Eu sabia que Diabo que é Diabo não resistiria a uma boa aposta.
Olha: eu sei que eu sou mentiroso; mas todo mundo diz que o Diabo é o pai da mentira. Tão mentiroso quanto eu, ou até mais, é o senhor.
Obrigado! Você não sabe como é difícil receber um elogio no meu caso — disse com enfado, enquanto fingia conferir o asseio das unhas à média distância do olhar.
Então, façamos o seguinte: já são oito horas. Fiquemos juntos até a meia-noite. Se, nesse espaço de tempo, eu disser uma mentira, minha alma será sua eternamente. E, à meia-noite, o senhor poderá levá-la. Porém, se for o senhor quem a disser, é o senhor quem sairá de mãos vazias.
Mas, e se empatarmos? E se só dissermos a verdade? – ele sorriu.
Eu arrisquei todas as minhas fichas nesse momento, mas sentia que meu plano poderia dar certo.
Se empatar, à meia-noite em ponto, você me leva.
O Diabo riu e me estendeu sua mão selando a aposta.
Negócio fechado!
Nesse momento minha mulher veio à sala e se surpreendeu.
Querido, quem é esse cavalheiro? Cliente seu?
O Diabo olhou para mim, esperando uma resposta. Eu não podia mentir.
Não, meu bem. Esse aqui é o Diabo e ele veio para levar minha alma embora. Nós temos de sair.
Deixe de brincadeiras, Beto! Quem é esse senhor? É amigo do boliche? Hoje é dia de você ir jogar... Vocês estão indo ao boliche? É isso?
Não, meu bem. Não tem boliche nenhum. Nunca teve. Nas noites de quinta-feira, eu... eu... eu saía para me encontrar com sua prima Euzébia.
Que loucuras você está dizendo, Adalberto? — e tapou a boca com a mão para sufocar o choro que não tardaria.
O Diabo colocou seu chapéu e passou por minha mulher fazendo um cumprimento com a cabeça. Eu apenas o segui de cabeça baixa, enquanto ela ficou estancada à porta com a aflição nos olhos e sem compreender a situação.
As horas seguintes foram de angústia, mas, ao mesmo tempo, ganhavam, vez por outra, toques de descontração: o Diabo sabe ser uma boa companhia quando quer.
Em um barzinho da Lapa, conversamos sobre muitas coisas, bebendo uma boa pinga e nos comportando como velhos amigos; eu tentando arrancar mentiras dele; ele, minhas.
O Diabo era bem esperto:
Não, não! Nada disso! Meu pai é a justiça em pessoa! Eu mereci. Também, quem mandou ser tão arrogante e querer roubar o fogo de lá. Se ser Diabo já é difícil, ser Deus então... Ichi! Eu era moleque!
Eu tentava me esquivar das dele:
Santa?! Mamãe?! Aquilo lá é uma cascavel! Você deve saber muito bem disso! — e nos rimos. — Se eu for parar no inferno, vê se leva ela para outro lugar, hein! Não vá aumentar o meu suplício! — e derrubamos mais outra talagada após uma sonora gargalhada.
Nisso, vi quando um parceiro de sinuca entrou, sentando-se junto ao balcão do bar um pouco distante de nós. Respirei aliviado, pois já estava mesmo quase na hora.
Olhe... — eu disse a meu acompanhante — Tenho de ir ao banheiro.
Vá! Pode ir, meu amigo! Se tentar fugir de mim, não irá muito longe mesmo.
Nem me passa pela cabeça! — e, mais uma vez, falava a verdade.
Discretamente, na volta, parei ao lado de meu amigo. Fiz o pedido que deveria fazer a ele, que concordou prontamente, mesmo não entendendo a razão de eu pedir tal coisa.
De volta à minha mesa, ficamos os dois calados. Ele puxou pela corrente de ouro um belíssimo relógio de bolso. Abriu-o e checou as horas; tornou a guardá-lo.
É... — ele comentou.
É... — foi o que pude responder.
E ficamos ali, mudos, durante alguns minutos, até que meu amigo se aproximou e, fingindo não me conhecer, perguntou-nos:
Algum dos cavalheiros poderia me dizer as horas?
O Diabo puxou novamente a correntinha de ouro, abriu seu relógio e disse com firmeza e sorrindo para mim:
Meia-noite, cavalheiro!
Meu amigo se afastou, agradecendo e sumiu por entre as pessoas que se espremiam no pequeno bar, a essa altura já lotado.
Senhor Adalberto de Castro, já que temos um empate aqui, ninguém mentiu, um trem está a nossa espera! — o Diabo disse com uma voz gutural que até então eu não ouvira.
Apostando em minha estratégia, de meu posto, eu disse tentando dar um ar de empáfia à minha voz, mas gelado por dentro:
Se o senhor está atrasado, pode ir. Eu ficarei aqui mesmo.
Como assim?! — chacoalhou a mesa com um soco que chamou a atenção de quem estava ao nosso redor. — Como se atreve a romper um pacto comigo?! Tínhamos uma aposta!
Sim! — eu disse um pouco mais confiante. — E o senhor acabou de perdê-la!
O Diabo demonstrou estar confuso.
O senhor — disse eu — acabou de mentir para aquele cavalheiro que aqui esteve. Ele lhe perguntou as horas, e sua resposta foi "Meia-noite". Mas eu lhe digo que, na verdade, agora é uma hora da madrugada. Mais precisamente, uma hora e um minuto!
O quê?! Como ousas?!
Diego! — eu gritei para o balconista do bar.— Que horas são agora?
Meia-noite e... dois!
Eu gelei de novo.
Oh, Diego! Seu mal-informado!
Ah, é! Minto! Deixa eu acertar o relógio aqui! Hoje entra em vigor esse negócio de horário de verão, não é? Esses governantes têm cada uma.... É uma hora e quatro minutos!
Viu? — eu sorri para o Diabo, levantando a sobrancelha direita, como o único gesto de vitória que me veio à cabeça. — O senhor mentiu para aquele cavalheiro. Além do mais, o senhor perdeu a hora.
O Diabo teve de se resignar.
Horário de verão?! Mas que diab... Bem... — e deu sua última talagada. — Foi uma aposta justa! Só me resta então dizer ade... Dizer até qualquer dia; quero dizer. Mas não pense que isso o livrará de mim nem se vanglorie de seu feito: nem sempre há dedo meu em tudo de feio que ocorre no mundo. A mesma lógica se aplica a quando os meus planos de repente desandam. Já estou acostumado.
Ficou de pé e inclinou a cabeça para mim, levantando minimamente o chapéu preto, que escondia duas pequenas protuberâncias, uma em cada lado de sua testa, nas quais não havia posto reparo antes. Deu-me as costas. Pôs-se a caminhar, apoiando-se em sua elegante bengala coroada pelo rubi sanguíneo, e se dissipou no meio de todos.
Respirei aliviado. Só então entendi o sentimento que tivera em minha sala de estar. Sabia que teria muita coisa a explicar a minha mulher quando chegasse a meu apartamento. Mas, daquele dia em diante, eu decidi que, acontecesse o que acontecesse, jamais voltaria a mentir novamente. E me manteria sempre muito bem-informado; ouvir as notícias no rádio de muito me valeu, mas o Diabo talvez não se deixasse enganar por duas vezes.