totus-blog.blogspot.com
O
homem que enganou o Diabo
Marcelo Ferreira de Menezes
Eu
havia acabado de entrar em casa. Chovia, embora fizesse uma noite bem
quente. Joguei meu paletó sobre as costas de uma cadeira, liguei o
rádio, peguei um uísque e me atirei em minha confortável poltrona
de couro preto.
— Querido?
É você? — perguntou minha mulher lá de seu banho.
— Sim!
— respondi, pensando "E quem mais haveria de ser?".
— Já
estou acabando! — ela gritou.
Era
a noite do dia primeiro de outubro do ano de 1931. Naquele tempo,
ainda não havia televisão, que só chegaria até nós dezenove anos
mais tarde. Era pelo rádio que ouvíamos as notícias do Brasil e do
mundo em casa. E aquele era meu horário de ouvi-las.
Após
um forte raio, que deve ter atingido meu prédio em cheio, a energia
elétrica acabou por uns trinta segundos, talvez. Quando ela voltou,
só não caí porque já estava sentado.
— Boa-noite,
Adalberto!
De
pernas cruzadas e completamente à vontade, um cavalheiro
bem-apessoado, de chapéu, elegantemente vestido por um terno preto,
sentado na poltrona em frente à minha me cumprimentou sorrindo.
Saltei
de minha cadeira e, assumindo minha posição de dono daquele lugar,
o enfrentei.
— É
muita petulância do senhor se aproveitar da falta de luz e entrar
assim na casa dos outros! O que diabos o senhor pensa estar fazendo?
Ponha-se já para fora daqui ou vou chamar a polícia! Aliás, como
foi que o senhor entrou?
Ele
apenas sorriu e, com gentileza na voz, como se fosse ele o dono do
apartamento, pediu:
— Sente-se,
Adalberto, sente-se. Temos assuntos, negócios para tratar. Já vou
explicar "o que diabos" estou fazendo aqui, ainda que não
goste muito de ver meu nome nessa forma tão pouco polida de
expressão.
Tinha
às mãos uma belíssima bengala de ébano, cujo topo exibia um
imenso rubi que cintilava juntamente com o brilho negro e profundo de
seu olhar.
— Permita-me
que me apresente — solicitou.
E
ele se apresentou.
— Não!
— eu disse quase rindo.— A essa hora, depois de um dia duro de
trabalho, tudo o que eu menos precisava era que um doido invadisse a
minha casa! O senhor está me dizendo que é o Diabo, quero dizer,
Satanás? Satã? Lúcifer? O Capeta? Em pessoa?
— Qual
o problema? — disse se inclinando para frente, apoiando uma mão
sobre a outra e ambas em sua bengala.
"Esse
tipo de maluco geralmente é inofensivo", eu pensei lá comigo.
E resolvi entrar no jogo dele.
— Ah,
senhor Diabo, seria muito pedir uma pequena prova do que estás aí a
me falar?
— Prontamente!
— respondeu ficando de pé. — Mas esteja preparado.
Mal
tive tempo de piscar os olhos e aquele distinto cavalheiro foi
substituído por uma figura tão horripilante e que exalava um cheiro
tão terrível, que, por alguns segundos, perdi os sentidos. Quando
os recobrei, eu estava novamente em minha poltrona; ele, sentado à
minha frente; o rádio, ainda dando as notícias.
— Mas
por que eu?! Por que agora?!
— Com
respeito à primeira pergunta, porque o senhor prejudicou muita gente
com suas mentiras. E, além do mais, adultério é crime até para a
lei dos homens, não sabia?
— Mas
eu sou advogado, o que você queria? — tentei me defender. E você
mesmo sabe: a carne é fraca! Aliás, você é que nos tenta!
— Nada
disso importa. Agora, com relação à segunda pergunta, só pude vir
agora porque eu tive muito trabalho hoje. Não é nada fácil ser o
Diabo; é preciso muita competência para sair à cata dos que devem.
Mas vamos; você é o último do dia e eu sinceramente estou cansado;
mereço um descanso.
Nesse
momento o terror do inevitável percorreu minha espinha. Mas um outro
sentimento tomou de assalto meu espírito: pela primeira vez na vida,
eu sentia um arrependimento sincero e desejava nunca ter contado as
mentiras que contei, ter feito as trapaças que fiz para ganhar meus
casos e, principalmente, desejei jamais ter traído minha linda
esposa, que como sempre estava se demorando em seu banho. E esse
sentimento me brindou com uma ideia. Imediatamente corri até o rádio
e o desliguei.
— Vamos
fazer um trato — eu propus.
— Ai,
vocês são todos iguais! Sempre nessa hora pensam em fazer um trato!
Na hora da morte...
— Não,
veja, eu falo sério. Você não tem nada a perder. É uma aposta.
— Qual
é a aposta? — inquiriu, levantando a sobrancelha esquerda.
Eu
sabia que Diabo que é Diabo não resistiria a uma boa aposta.
— Olha:
eu sei que eu sou mentiroso; mas todo mundo diz que o Diabo é o pai
da mentira. Tão mentiroso quanto eu, ou até mais, é o senhor.
— Obrigado!
Você não sabe como é difícil receber um elogio no meu caso —
disse com enfado, enquanto fingia conferir o asseio das unhas à
média distância do olhar.
— Então,
façamos o seguinte: já são oito horas. Fiquemos juntos até a
meia-noite. Se, nesse espaço de tempo, eu disser uma mentira, minha
alma será sua eternamente. E, à meia-noite, o senhor poderá
levá-la. Porém, se for o senhor quem a disser, é o senhor quem
sairá de mãos vazias.
— Mas,
e se empatarmos? E se só dissermos a verdade? – ele sorriu.
Eu
arrisquei todas as minhas fichas nesse momento, mas sentia que meu
plano poderia dar certo.
— Se
empatar, à meia-noite em ponto, você me leva.
O
Diabo riu e me estendeu sua mão selando a aposta.
— Negócio
fechado!
Nesse
momento minha mulher veio à sala e se surpreendeu.
— Querido,
quem é esse cavalheiro? Cliente seu?
O
Diabo olhou para mim, esperando uma resposta. Eu não podia mentir.
— Não,
meu bem. Esse aqui é o Diabo e ele veio para levar minha alma
embora. Nós temos de sair.
— Deixe
de brincadeiras, Beto! Quem é esse senhor? É amigo do boliche? Hoje
é dia de você ir jogar... Vocês estão indo ao boliche? É isso?
— Não,
meu bem. Não tem boliche nenhum. Nunca teve. Nas noites de
quinta-feira, eu... eu... eu saía para me encontrar com sua prima
Euzébia.
— Que
loucuras você está dizendo, Adalberto? — e tapou a boca com a mão
para sufocar o choro que não tardaria.
O
Diabo colocou seu chapéu e passou por minha mulher fazendo um
cumprimento com a cabeça. Eu apenas o segui de cabeça baixa,
enquanto ela ficou estancada à porta com a aflição nos olhos e sem
compreender a situação.
As
horas seguintes foram de angústia, mas, ao mesmo tempo, ganhavam,
vez por outra, toques de descontração: o Diabo sabe ser uma boa
companhia quando quer.
Em
um barzinho da Lapa, conversamos sobre muitas coisas, bebendo uma boa
pinga e nos comportando como velhos amigos; eu tentando arrancar
mentiras dele; ele, minhas.
O
Diabo era bem esperto:
— Não,
não! Nada disso! Meu pai é a justiça em pessoa! Eu mereci. Também,
quem mandou ser tão arrogante e querer roubar o fogo de lá. Se ser
Diabo já é difícil, ser Deus então... Ichi! Eu era moleque!
Eu
tentava me esquivar das dele:
— Santa?!
Mamãe?! Aquilo lá é uma cascavel! Você deve saber muito bem
disso! — e nos rimos. — Se eu for parar no inferno, vê se leva
ela para outro lugar, hein! Não vá aumentar o meu suplício! — e
derrubamos mais outra talagada após uma sonora gargalhada.
Nisso,
vi quando um parceiro de sinuca entrou, sentando-se junto ao balcão
do bar um pouco distante de nós. Respirei aliviado, pois já estava
mesmo quase na hora.
— Olhe...
— eu disse a meu acompanhante — Tenho de ir ao banheiro.
— Vá!
Pode ir, meu amigo! Se tentar fugir de mim, não irá muito longe
mesmo.
— Nem
me passa pela cabeça! — e, mais uma vez, falava a verdade.
Discretamente,
na volta, parei ao lado de meu amigo. Fiz o pedido que deveria fazer
a ele, que concordou prontamente, mesmo não entendendo a razão de
eu pedir tal coisa.
De
volta à minha mesa, ficamos os dois calados. Ele puxou pela corrente
de ouro um belíssimo relógio de bolso. Abriu-o e checou as horas;
tornou a guardá-lo.
— É...
— ele comentou.
— É...
— foi o que pude responder.
E
ficamos ali, mudos, durante alguns minutos, até que meu amigo se
aproximou e, fingindo não me conhecer, perguntou-nos:
— Algum
dos cavalheiros poderia me dizer as horas?
O
Diabo puxou novamente a correntinha de ouro, abriu seu relógio e
disse com firmeza e sorrindo para mim:
— Meia-noite,
cavalheiro!
Meu
amigo se afastou, agradecendo e sumiu por entre as pessoas que se
espremiam no pequeno bar, a essa altura já lotado.
— Senhor
Adalberto de Castro, já que temos um empate aqui, ninguém mentiu,
um trem está a nossa espera! — o Diabo disse com uma voz gutural
que até então eu não ouvira.
Apostando
em minha estratégia, de meu posto, eu disse tentando dar um ar de
empáfia à minha voz, mas gelado por dentro:
— Se
o senhor está atrasado, pode ir. Eu ficarei aqui mesmo.
— Como
assim?! — chacoalhou a mesa com um soco que chamou a atenção de
quem estava ao nosso redor. — Como se atreve a romper um pacto
comigo?! Tínhamos uma aposta!
— Sim!
— eu disse um pouco mais confiante. — E o senhor acabou de
perdê-la!
O
Diabo demonstrou estar confuso.
— O
senhor — disse eu — acabou de mentir para aquele cavalheiro que
aqui esteve. Ele lhe perguntou as horas, e sua resposta foi
"Meia-noite". Mas eu lhe digo que, na verdade, agora é uma
hora da madrugada. Mais precisamente, uma hora e um minuto!
— O
quê?! Como ousas?!
— Diego!
— eu gritei para o balconista do bar.— Que horas são agora?
— Meia-noite
e... dois!
Eu
gelei de novo.
— Oh,
Diego! Seu mal-informado!
— Ah,
é! Minto! Deixa eu acertar o relógio aqui! Hoje entra em vigor esse
negócio de horário de verão, não é? Esses governantes têm cada
uma.... É uma hora e quatro minutos!
— Viu?
— eu sorri para o Diabo, levantando a sobrancelha direita, como o
único gesto de vitória que me veio à cabeça. — O senhor mentiu
para aquele cavalheiro. Além do mais, o senhor perdeu a hora.
O
Diabo teve de se resignar.
— Horário
de verão?! Mas que diab... Bem... — e deu sua última talagada. —
Foi uma aposta justa! Só me resta então dizer ade... Dizer até
qualquer dia; quero dizer. Mas não pense que isso o livrará de mim
nem se vanglorie de seu feito: nem sempre há dedo meu em tudo de
feio que ocorre no mundo. A mesma lógica se aplica a quando os meus
planos de repente desandam. Já estou acostumado.
Ficou
de pé e inclinou a cabeça para mim, levantando minimamente o chapéu
preto, que escondia duas pequenas protuberâncias, uma em cada lado
de sua testa, nas quais não havia posto reparo antes. Deu-me as
costas. Pôs-se a caminhar, apoiando-se em sua elegante bengala
coroada pelo rubi sanguíneo, e se dissipou no meio de todos.
Respirei
aliviado. Só então entendi o sentimento que tivera em minha sala de
estar. Sabia que teria muita coisa a explicar a minha mulher quando
chegasse a meu apartamento. Mas, daquele dia em diante, eu decidi
que, acontecesse o que acontecesse, jamais voltaria a mentir
novamente. E me manteria sempre muito bem-informado; ouvir as
notícias no rádio de muito me valeu, mas o Diabo talvez não se
deixasse enganar por duas vezes.