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A primeira pedra
Marcelo Ferreira de Menezes
— Fique bem bonitinho aí, brincando no quintal, que a mamãe vai na vendinha e já volta, viu?
Dona Adalgisa abaixou-se, beijou o filho carinhosamente e, sorrindo, olhou bem fundo nos seus olhos. O menino, sentado perto do canteiro, retribuiu-lhe o gesto com um sorriso aquiescente. Imediatamente ele, novamente sério, voltou a se entreter com suas três bolinhas de borracha. Seu nome era Felipe.
A mulher seguiu para a rua, passou a chave no portão e da calçada olhou novamente para o pequenino, que continuava a brincar no mesmo ponto em que ela o deixara. Como tinha a certeza de não demorar, pois a mercearia era mesmo perto, partiu sossegada.
Uma das bolinhas de borracha, a azul, a predileta do menino, ganhou um impulso inesperado, foi quicando, até que atravessou as grades do portão e começou a descer a rua. Felipe conseguiu chegar ainda a tempo de vê-la dando pulos bruscos a cada encontro com os paralelepípedos. Daí foi que surgiu a ideia: por que não segui-la? E foi o que ele fez.
Sua pequena estatura não lhe permitiria escalar o muro. Entretanto a grade do portão oferecia suporte mais do que suficiente para seus pequeninos pés e mãos. Agarrou-se firmemente às grades de ferro, forçou a subida e passou a primeira perna. Contudo, o esforço não chegou a ser o bastante para impulsionar todo o corpo, que pendeu um pouco mais para trás. Com meia perna para fora e o restante do corpo para dentro inclinando-se cada vez mais, o menino tentava, pela força pífia de seus bracinhos, evitar a queda. Arrependido da arte que iniciara, começou a suar nas palmas das mãos e a chorar; percebeu que não haveria como escapar daquela situação.
Na mesma hora, passava por ali um catador de lixo, que, ao ver o drama da criança, pressentiu a gravidade do problema: caindo da posição em que se encontrava, o menino poderia, no mínimo, fraturar o crânio. Os olhos de ambos se encontraram aterrorizados durante alguns segundos.
Sem perder mais tempo, o catador largou seu carrinho e, partindo do outro lado da rua num salto, lançou-se em direção ao muro, pulando-o com a habilidade de um gato. Em vão; sem forças e com as mãos encharcadas de suor, Felipe, dando um grito agudo, foi ao chão, batendo fortemente a cabeça.
— Menino!... Ah! Meu deus! Dona!... Ô, dona!... — gritou desesperado o homem em direção à casa, sem saber que estava vazia.
Dona Isolina, vizinha fofoqueira e dada a intrigas, tendo ouvido os gritos, chegou à sua janela no momento em que o homem recolhia a seu colo o pequeno Felipe. Precipitadamente, concluiu ela tratar-se de sequestro ou coisa pior.
— Pega! Tarado! Pega! — sacudia nervosamente seu pano de prato úmido.
Isso despertou a atenção de outros moradores, e, em instantes, a rua estava tomada de curiosos e de gente que se aglomerava frente ao portão da casa.
— Que que está acontecendo? — quis saber um.
— Um mendigo quis estuprar um menino aí dentro — informou outro.
— Canalha! Tem mais é que morrer! Mata! — adiantou-se um outro ainda.
Assustado, o catador mal conseguia se explicar; também, no meio da confusão, não haveria ninguém que o ouvisse. Além de tudo, sua camisa exibia o sangue que jorrara da testa do menino.
— Lincha esse vagabundo! — alguém puxou.
— Xá comigo! — avançou o borracheiro da esquina, homem truculento e musculoso, capaz de erguer a traseira de um Fusca só para impressionar.
Com um forte empurrão, ele arrebentou a tranca do portão, retirou o menino dos braços do catador atônito e rendeu este último, jogando-o ao chão. Foi seguido por um grupo barulhento, todos já empunhando paus e pedras. Até as costumeiramente pacatas donas de casa, enfurecidas, pareciam querer tirar o seu quinhão.
Ao dobrar a esquina, a mãe do menino percebeu o tumulto em frente à sua casa. Dona Adalgisa correu com o coração aos pulos. Ao ver Felipe desmaiado e sangrando no colo de uma vizinha, quase desmaiou. Agarrou o menino nervosa.
— Meu filho! Meu filhinho! Quem foi que fez isso?! Quem?!
— Foi ele! — apontaram o catador.
— Não, dona! Eu só... — tentou se explicar ainda o catador, com os olhos quase pulando das órbitas.
Os paus e pedras já estavam prestes a entrar em ação, quando um gritinho agudo se destacou na algazarra.
— Para! Não foi ele, não!
Era Felipe, acordando de seu desmaio, ainda zonzo, mas consciente do que se passava.
— Não foi ele não, mamãe! Eu caí sozinho. Minha bolinha... O moço veio pra me ajudar.
Todos ouviram a explicação do menino e logo perceberam, constrangidos, a verdadeira tragédia que teria ocorrido, caso Felipe não tivesse despertado.
Como se fosse uma procissão, alguns em silêncio, meditativos, outros murmurando coisas incompreensíveis, todos foram voltando a seus afazeres. Aqui e ali, ouvia-se mais nitidamente o som das pedras e dos pedaços de pau sendo abandonados pelo chão.
O menino estava fora de perigo; fora somente um corte sem importância. O catador, aliviado, no dia seguinte com certeza já estaria recuperado do terrível susto. Mas aquelas pessoas aparentemente tranquilas jamais encontrariam perdão em si mesmas, pois constataram assombradas que, naquele dia estranho, teriam tido mesmo coragem para atirar vergonhosamente a primeira pedra.