Arqueologia (Em 25/07/2012)

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Arqueologia
Marcelo Ferreira de Menezes

For those who dream in the next room.

Ele foi o primeiro arqueólogo; mas era um forasteiro.
Um dia ele caiu de joelhos no chão, apanhou um punhado da substância negra e, esfregando-a em seus dedos, fez uma observação para que todos ouvissem:
– Isso aqui não é o chão!
Todos se entreolharam admirados.
– Petulante! – alguém gritou lá detrás.
– Quero dizer, – ele continuou – é chão porque estamos pisando nele, mas ainda não é “o” chão; nós estamos é sobre um monte de lixo.
O vilarejo entrou em polvorosa.
– Como pode! – indignavam-se abismados os habitantes.
– Blasfêmia! – sacudiam-se outros.
Era justo. Alguns, tendo sempre pisado aquilo que chamavam chão, não podiam crer que o que pisavam fosse lixo. Essa revelação dava-lhes medo; criam que, uma vez sem aquela plataforma negra sob seus pés, jamais ficariam de pé novamente sobre qualquer outra coisa. Contudo havia também aqueles que suspeitavam que realmente não fosse o chão, só que, por não saberem dizer ao certo o que pudesse ser aquilo ou por comodismo, achavam melhor ficar calados. E havia aqueles que no passado foram os responsáveis pela construção da plataforma, a quem interessava que não fosse revelado o que dormia sob a epiderme escura e densa que se estendia imponente até o horizonte.
O arqueólogo se abaixou novamente e, munido de uma pequena pá e uma escovinha de pelos, pôs-se a cavar e escovar, cavar e escovar, cavar e escovar. Até que, depois de certo tempo, abriu um buraco de bom tamanho.
– Vejam! – ele gritou surpreso. – Esse buraco nos levará ao chão de tudo!
O conselheiro do vilarejo, um dos responsáveis pelo projeto de engenharia da plataforma, se aproximou e disse:
– Muito cuidado, filho! Isso aí não é buraco coisa nenhuma! O que você tem aí é só o avesso do chão.
– Avesso do chão? Mas como, se os meus olhos veem...
– Ora, diabos! Nem da cidade você é! Isso é o avesso do chão! Está implícito!
Tentaram de tudo para que o arqueólogo não continuasse cavando e escovando, cavando e escovando, cavando e escovando... Mas ele persistia em sua obstinada missão.
Os dias foram passando, e o que era apenas um buraco transformou-se em uma cratera gigantesca por onde os raios claríssimos do sol se debruçavam.
Quando todos do vilarejo se aproximaram da borda da cratera, os mais inocentes levaram um susto; os que suspeitavam mas nada diziam ficaram constrangidos; os mais velhos caíram espumando, envenenados pela própria raiva.
Camada após camada, todos testemunharam finalmente que estavam de pé sobre uma imensa montanha de lixo. No centro da cratera, um homem magro, sujo e ofegante ria convulsivamente com uma pá e uma escovinha à mão. Era o arqueólogo. Ele havia chegado ao verdadeiro chão. “Encontrei! Eu estava certo! Encontrei!”, ele gritava a pulmões abertos.
Entretanto sua felicidade não se devia somente a esse motivo. Sim, ele provara que não estavam sobre o chão como uns diziam e outros sempre acreditaram, mas sobre uma gigantesca camada de lixo que encobria o que de fato era o chão. Sua felicidade era amplificada por um achado de magnitude ainda maior . Sentado sobre o verdadeiro chão e encostado ao que parecia ser um imenso edifício tombado, feito de gomos enormes e todo branco, o arqueólogo exultava por finalmente ter exposto para todo o vilarejo aquilo que realmente o lixo tentava esconder havia anos: a pavorosa espinha dorsal da ignorância.