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Celi Aurora |
O
imigrante
Marcelo
Ferreira de Menezes
Alguns índios
norte-americanos acreditam que, quando alguém morre, sua alma migra
para o animal que regia sua personalidade enquanto vivo. Vi que isso
era mesmo verdade logo após minha morte. Compreendo bem agora o
porquê é difícil de se acreditar nisso: a transição é brusca e
aparentemente sem explicação.
Morte tola a minha.
Trinta anos de experiência na polícia deveriam ter sido suficientes
para eu não disparar acidentalmente contra meu peito. Mas acidentes
acontecem. Não senti nada. Quando abri os olhos, eu estava dentro de
um ninho em um arbusto de tamanho médio. Meus braços tinham se
convertido em asas, todo o meu corpo estava coberto de penas e minha
boca era então um delicado bico. Eu virara um passarinho, mais
precisamente um canário.
Estava em uma espécie de
chácara ou sítio. Fosse o que fosse, como recém-pássaro, eu havia
perdido minha capacidade de linguagem. Hoje recuperei parte dela, mas
na época era muito difícil compreender mesmo as coisas mais simples
para um ser humano.
Havia ali um senhor, que
me alimentava com uma fruta vermelha e adocicada. Ele estava sempre
assoviando uma antiga melodia; sempre a mesma. Parecia um homem
inofensivo, mas uma noite, enquanto eu tentava adormecer, vi quando
ele arrastou o corpo inerte de uma jovem e o enterrou bem embaixo da
árvore de frutos vermelhos. Só algum tempo depois, minha mente de
canário percebeu que eu presenciara um crime.
Os dias se passavam, e o
velho continuava a me alimentar com os frutinhos vermelhos; eu comia
por instinto, pois tinha fome. No entanto, parte de mim compreendia
que ele era um assassino perigoso, mesmo que a palavra assassino não
estivesse formulada no meu entendimento. Vi mais outras duas jovens
serem enterradas no mesmo lugar.
Não só os humanos podem
se lembrar de vidas passadas; animais também podem. Eu comecei a ter
lampejos de minha recente encarnação como policial. Lembrei-me de
que eu e meu parceiro estávamos à caça de um serial killer,
cujas vítimas eram jovens meninas. Sem dúvida era o velho. Decidi
que tinha de entregá-lo logo, antes que ele ceifasse a vida de mais
uma jovem.
Durante semanas voei à
casa de meu parceiro e me esbati contra o vidro da janela de seu
quarto e de seu carro, tentando alertá-lo. Inútil; ele apenas me
espantava para longe. Cantarolava esganiçadamente o dia inteiro na
janela da delegacia. Não estava dando certo. Até que decidi pensar
com minha cabeça de passarinho e descobri que a solução passava
necessariamente pela minha garganta.
Não
me foi difícil aprender a melodia assoviada pelo velho: Love
me tender; Elvis tinha sido meu
ídolo. Além disso,
voando por toda a região, descobri que, somente naquele sítio,
havia a tal fruta vermelha e saborosa que me alimentava.
Então, passei a
depositar o pequeno fruto todos os dias no batente da janela de meu
parceiro, enquanto cantava a canção. Depois de muito lançar fora
as bolotas, finalmente o formato do fruto lhe chamou atenção; além
de vermelho, ele tinha partes brancas e pretas que faziam com que se
parecesse com um olho. A canção também deu certo.
‒ Samanta! ‒ ele
chamava sua mulher intrigado. ‒ Eu estou malucou ou esse passarinho
aqui está assoviando Love me tender, do Elvis?
Mas ele só resolveu
mandar o fruto para o laboratório quando eu levei para ele algo
realmente valioso: um cordão de ouro que caíra do pescoço de uma
das vítimas. A intuição de meu amigo fez o restante. O cordão foi
reconhecido como o que usava uma jovem dada como desaparecida.
Numa manhã eu vi
finalmente meu parceiro entrando na propriedade do velho. De meu
ninho, acompanhei os passos dos dois. “É ali! Elas estão
enterradas bem ali!”, eu cantava freneticamente agitando minhas
asas. Meu companheiro parecia não ver nada de errado no lugar.
Chutava um monte de folhas aqui, um punhado de terra ali. Chegou
perto do arbusto e colheu um dos frutos vermelhos. Os dois riam.
Apertou a mão do velho e se dirigiu para a saída. Ele estava indo
embora. Quase voei até ele para lhe ferrar uma bicada na cabeça.
Não foi preciso.
O velho, que acompanhava
a partida de meu amigo de forma sinistra e apoiado no cabo de um
ancinho, pôs-se assoviar aquela melodia. Meu parceiro estacou e se
virou lentamente, atravessando o assassino com um olhar agudo. Acenou
com a cabeça, entrou no carro e partiu.
Mais tarde, toda a
central estava de volta com cães farejadores. Havia corpos
enterrados por toda a propriedade. E não só isso. Um dos agentes,
ao arrombar a porta de um celeiro, trouxe à luz mais horror: havia
outras jovens, prontas para o abate.
E foi exatamente enquanto
elas deixavam em prantos o cativeiro é que recuperei num clarão
toda a lembrança de minha última vida humana. Eu era um homem
maduro, policial experiente, morto por uma fatalidade; mas eu era
mais: eu era também um pai de família. Lembrei-me disso quando vi
uma das meninas deixando atônita e fragilizada aquele tenebroso
celeiro: era minha filha.
Vida e morte continuarão
sempre como dimensões que se estendem muito além de qualquer
compreensão, seja ela humana ou animal. Hoje não distingo a
fronteira entre as duas. Não muito tempo depois desses fatos, tive
de abandonar meu pequeno e emplumado corpo de canário para
imediatamente assumir uma nova forma. Assim segue o mistério da
vida. Não sei nada sobre ele; sou um imigrante e vivo somente com
uma certeza: a de que a Providência jamais age de forma acidental.