Desejo (Em 09/11/2012)

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    Desejo
    Marcelo Ferreira de Menezes

    Laura estava parada, junto à cerca, observando os cavalos a correrem. A proximidade do potro à égua Faísca despertou nela um sentimento diferente do que então estava sentindo. Lembrou-se de sua própria mãe e de como ela poderia realmente estar sofrendo com toda aquela situação.
    ̶  O filhote não se separa de sua mãe, não é verdade, sinhazinha? ̶  perguntou atrás da moça uma voz masculina.
    A voz era de Bento, capataz da fazenda, que se aproximara de mansinho. A moça tentou se refazer do susto e disse com faceirice na voz:
    ̶  Ah, Bento! Você parece um fantasma, surgindo desse jeito! Quase me mata!
    O rapaz, percebendo o constrangimento na face da moça, intuiu o que se passava por sua mente. E decidiu ser um pouco mais ousado, apesar de saber de sua condição de serviçal dali.
    ̶  Sinhazinha não deveria se afastar de sua mãe desse jeito. Vai sofrê e sua mãe também. Esse rapaz não presta pra senhora, não. Espere, que sua felicidade há de vir   ̶  disparou Bento com o coração aos pulos.
    ̶   Que cê tá dizendo, Bento?  ̶  quis disfarçar Laura.
         ̶   A sinhazinha que me perdoe, mas dia desses eu ouvi sinhá Vitória, sua mãe, dizendo assim: “Laura, esse rapaz não é pra você! Esquece logo isso, fia!”, que era pra sinhazinha se afastá dele. É seu Lúcio, né? Ela falava de seu Lúcio?
    A moça se riu em seu interior, vendo que, apesar de bem-intencionado, o rapaz sabia bem menos do que julgava. Haviam crescido juntos pela fazenda, feito irmãos os dois, até a morte do pai da moça, quando Bento passou a ser treinado para os serviços dali, vendo-se desde então quase que de longe. Bento havia pouco assumira a responsabilidade dos serviços da terra. Ele, que não conhecera seu pai, sofrera recentemente com a morte da mãe, Vicência, a empregada do rancho. E, não tendo mais ninguém no mundo, teve de justificar sua permanência ali.
    ̶  Bento... Você não sabe o que está me pedindo. Mamãe às vezes é tão...   ̶  e não conseguiu completar a frase.
    ̶  Sinhazinha, obedece Dona Vitória. Vai sê mió.
    A moça respirou fundo e olhando-o com ternura:
    ̶  É o que você quer, Bento? Quer que eu faça o que mamãe manda?
    ̶  Sim, sinhá.
             ̶  Ah, Bento. Não me chame de sinhá. O tempo das sinhazinhas já se foi há muito! Já estamos em mil novecentos e sessenta e quatro!   ̶  e os dois riram.   ̶  Então está bem. Farei o que me pedes; farei o que mamãe quer.
    Os olhos do moço brilharam, diante da certeza de que Laura não deixaria a fazenda com Lúcio, seu namorado. Sentiu que suas chances poderiam finalmente ganhar o contorno da realidade.
    De volta à casa, Laura atravessou a sala, passando por sua mãe, que, de pé, junto à janela, observara a cena de há pouco.
    ̶  Não penses que não vi isso, Laura!   ̶  virou-se Vitória.
    Laura não deu ouvidos e seguiu para seu quarto. A mãe a alcançou.
    ̶  Não me deixes falando sozinha. Eu...
    ̶  Chega, mamãe! Não precisa me torturar mais! Eu farei como a senhora quer!
    Vitória se sentou à beira da cama.
    ̶  Então... Filha, você voltou... à razão.
    ̶  Não, mamãe. Isso não tem nada a ver com razão. Eu ainda o amo!
    ̶  Você não...
    ̶  Eu o amo!   ̶  gritou a menina.
    ̶  Bento... Bento não é pra você, Laura!   ̶  devolveu a mãe. Quantas vezes terei de repetir? Vocês dois são irmãos!
    ̶  Você é cruel, mamãe! Não é como o vejo. Eu sofro...   ̶  e deixou vir o choro.
    ̶  Que entendes do sofrimento? E eu, o que não passei?! Casei-me tão moça... E não foi fácil ouvir de seu pai, moribundo, que Bento era seu filho com a falecida... Vicência! Que horror! E me fazer jurar que cuidaria desse... bastardo!
    ̶  Mamãe!   ̶  Laura pôs-se de pé.
    ̶  E por acaso minto? Bastardo! Eu sou é muito boa de deixar esse... rapaz ficar. Mas preferiria a morte a concordar com um... Ah! Meu Deus! Com esse incesto!
    Laura abaixou os olhos, corando.
    Então Vitória puxou pelo braço a filha e ambas se sentaram à beira da cama.
    ̶  Ademais, desde a morte de seu pai, a fazenda não vai bem, você sabe. O que duas mulheres podem fazer com isso tudo? Lúcio, sim! Lúcio é bom e poderá resgatar nossas dívidas, tocar os negócios. Seus pais... Em breve tudo se ajeitará.
    ̶  É assim que me vendes, mamãe?   ̶  Laura gemeu.
    Foi a vez de Vitória derrubar seu olhar ao chão.
    Três meses depois, Laura entrava no Chevrolet 1964 de Lúcio, rumo à Europa. Um triângulo invisível de sentimentos marcou a despedida. Bento, que ajudara a colocar as malas da menina no carro, já a distância, montado em seu cavalo, buscava compreender o que não entendera da conversa com sua sinhá naquela não tão distante manhã. O que teria dito de errado? A noiva, por instantes e tomada de culpa, vasculhou o olhar incrédulo do capataz, mas, resignada, fixou os olhos em seus dedos entrelaçados aos da mão de Lúcio, enquanto o Chevrolet se encaminhava à porteira. Vitória, da varanda da casa, assistiu à partida da filha com total alívio no peito. Ela, em segredo, comemorava triplamente: livrara a filha de uma situação desonrosa, resgatara a fazenda das duríssimas hipotecas e, o mais importante de tudo, limpara o caminho para lutar pelo objeto de seu desejo, que, naquele instante, era observado sem se dar conta disso: Bento.