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Desejo
Marcelo Ferreira de
Menezes
Laura estava parada,
junto à cerca, observando os cavalos a correrem. A proximidade do
potro à égua Faísca despertou nela um sentimento diferente do que
então estava sentindo. Lembrou-se de sua própria mãe e de como ela
poderia realmente estar sofrendo com toda aquela situação.
̶ O filhote não se
separa de sua mãe, não é verdade, sinhazinha? ̶ perguntou atrás
da moça uma voz masculina.
A voz era de Bento,
capataz da fazenda, que se aproximara de mansinho. A moça tentou se
refazer do susto e disse com faceirice na voz:
̶ Ah, Bento! Você
parece um fantasma, surgindo desse jeito! Quase me mata!
O rapaz, percebendo o
constrangimento na face da moça, intuiu o que se passava por sua
mente. E decidiu ser um pouco mais ousado, apesar de saber de sua
condição de serviçal dali.
̶ Sinhazinha não
deveria se afastar de sua mãe desse jeito. Vai sofrê e sua mãe
também. Esse rapaz não presta pra senhora, não. Espere, que sua
felicidade há de vir ̶ disparou Bento com o coração aos pulos.
̶ Que cê tá dizendo,
Bento? ̶ quis disfarçar Laura.
̶ A sinhazinha que
me perdoe, mas dia desses eu ouvi sinhá Vitória, sua mãe, dizendo
assim: “Laura, esse rapaz não é pra você! Esquece logo isso,
fia!”, que era pra sinhazinha se afastá dele. É seu Lúcio, né?
Ela falava de seu Lúcio?
A moça se riu em seu
interior, vendo que, apesar de bem-intencionado, o rapaz sabia bem
menos do que julgava. Haviam crescido juntos pela fazenda, feito
irmãos os dois, até a morte do pai da moça, quando Bento passou a
ser treinado para os serviços dali, vendo-se desde então quase que
de longe. Bento havia pouco assumira a responsabilidade dos serviços
da terra. Ele, que não conhecera seu pai, sofrera recentemente com a
morte da mãe, Vicência, a empregada do rancho. E, não tendo mais
ninguém no mundo, teve de justificar sua permanência ali.
̶ Bento... Você não
sabe o que está me pedindo. Mamãe às vezes é tão... ̶ e não
conseguiu completar a frase.
̶ Sinhazinha, obedece
Dona Vitória. Vai sê mió.
A moça respirou fundo e
olhando-o com ternura:
̶ É o que você quer,
Bento? Quer que eu faça o que mamãe manda?
̶ Sim, sinhá.
̶ Ah, Bento.
Não me chame de sinhá. O tempo das sinhazinhas já se foi há
muito! Já estamos em mil novecentos e sessenta e quatro! ̶ e os dois riram. ̶ Então está
bem. Farei o que me pedes; farei o que mamãe quer.
Os olhos do moço
brilharam, diante da certeza de que Laura não deixaria a fazenda com
Lúcio, seu namorado. Sentiu que suas chances poderiam finalmente
ganhar o contorno da realidade.
De volta à casa, Laura
atravessou a sala, passando por sua mãe, que, de pé, junto à
janela, observara a cena de há pouco.
̶ Não penses que não
vi isso, Laura! ̶ virou-se Vitória.
Laura não deu ouvidos e
seguiu para seu quarto. A mãe a alcançou.
̶ Não me deixes
falando sozinha. Eu...
̶ Chega, mamãe! Não
precisa me torturar mais! Eu farei como a senhora quer!
Vitória se sentou à
beira da cama.
̶ Então... Filha,
você voltou... à razão.
̶ Não, mamãe. Isso
não tem nada a ver com razão. Eu ainda o amo!
̶ Você não...
̶ Eu o amo! ̶ gritou a menina.
̶ Bento... Bento não
é pra você, Laura! ̶ devolveu a mãe. Quantas vezes terei de
repetir? Vocês dois são irmãos!
̶ Você é cruel,
mamãe! Não é como o vejo. Eu sofro... ̶ e deixou vir o choro.
̶ Que entendes do
sofrimento? E eu, o que não passei?! Casei-me tão moça... E não
foi fácil ouvir de seu pai, moribundo, que Bento era seu filho com a
falecida... Vicência! Que horror! E me fazer jurar que cuidaria
desse... bastardo!
̶ Mamãe! ̶ Laura
pôs-se de pé.
̶ E por acaso minto?
Bastardo! Eu sou é muito boa de deixar esse... rapaz ficar. Mas
preferiria a morte a concordar com um... Ah! Meu Deus! Com esse
incesto!
Laura abaixou os olhos,
corando.
Então Vitória puxou
pelo braço a filha e ambas se sentaram à beira da cama.
̶ Ademais, desde a
morte de seu pai, a fazenda não vai bem, você sabe. O que duas
mulheres podem fazer com isso tudo? Lúcio, sim! Lúcio é bom e
poderá resgatar nossas dívidas, tocar os negócios. Seus pais... Em
breve tudo se ajeitará.
̶ É assim que me
vendes, mamãe? ̶ Laura gemeu.
Foi a vez de Vitória
derrubar seu olhar ao chão.
Três meses depois, Laura
entrava no Chevrolet 1964 de Lúcio, rumo à Europa. Um triângulo
invisível de sentimentos marcou a despedida. Bento, que ajudara a
colocar as malas da menina no carro, já a distância, montado em seu
cavalo, buscava compreender o que não entendera da conversa com sua
sinhá naquela não tão distante manhã. O que teria dito de
errado? A noiva, por instantes e tomada de culpa, vasculhou o olhar
incrédulo do capataz, mas, resignada, fixou os olhos em seus dedos
entrelaçados aos da mão de Lúcio, enquanto o Chevrolet se
encaminhava à porteira. Vitória, da varanda da casa, assistiu à
partida da filha com total alívio no peito. Ela, em segredo,
comemorava triplamente: livrara a filha de uma situação desonrosa,
resgatara a fazenda das duríssimas hipotecas e, o mais importante de
tudo, limpara o caminho para lutar pelo objeto de seu desejo, que,
naquele instante, era observado sem se dar conta disso: Bento.