O poder da síntese (Em 08/11/2012)


       Após ler o texto Aposentadoria, na coluna Ler e-maginar, você pode pensar: “Mas é mais fácil fazer um texto narrativo quando não há um limite de linhas”. De fato, algumas contingências de ordem prática, como um número máximo de linhas a se respeitar, acabam limitando a capacidade expressiva e impondo certas restrições que dificultam a criação de uma narrativa verossímil por parte de um produtor de texto menos experiente.
     Pensando nessa dificuldade comum a todos os alunos especialistas, resolvemos fazer esta postagem para orientá-lo na tarefa desafiadora de “enxugar” o texto narrativo.
       Primeiramente, é imprescindível se admitir que todo e qualquer fato é passível de análise e de síntese; em outras palavras, todo fato pode ser desmembrado em inúmeros outros fatos que o antecederam e que o sucederam e, ao contrário, ser reduzido ao menor número possível de eventos a ele relacionados. Isso porque, no mundo real, no qual vivemos, o fluxo de acontecimentos é infinito e ininterrupto. Por exemplo, você pode dizer simplesmente: Hoje, pela manhã, como habitualmente faço, arrumei-me, tomei meu café da manhã e dirigi-me ao meu trabalho.
      Mas você pode desmembrar esses fatos em outros: Hoje, ao abrir os olhos após uma noite de sono restabelecedor, logo pela manhã, mais exatamente às 6h02min, sentei-me na minha cama, calcei meus confortáveis chinelos, não sem antes bocejar e me espreguiçar, fui até ao banheiro, fiz minha ablução matinal, tirei meu pijama, coloquei meu uniforme para somente então tomar meu café da manhã. Após alimentar-me, escovei meus dentes, passei um perfume, peguei as chaves do carro, tirei-o da garagem e dirigi-me ao meu trabalho. Lá chegando, estacionei o veículo, tranquei-o, subi as escadas até chegar à minha sala de trabalho. Ao adentrá-la, cumprimentei meus colegas presentes, sentei-me à minha mesa, liguei meu computador e comecei a trabalhar.
        E pode, igualmente, reduzi-los: Hoje, após o café da manhã, fui trabalhar.
       Como se pode ver, não há um padrão para o encadeamento das ações; o que determinará a sequência dos fatos e o ritmo imprimido a eles ao serem transcritos para o papel será o olhar do narrador, guiado pelos objetivos e intenções previamente estabelecidos. No caso de uma narração feita para ser avaliada, além das exigências textuais propriamente ditas, é preciso se levar em conta a abordagem do tema e o limite máximo de linhas.

       Voltando ao texto Aposentadoria, como fazer para diminuí-lo sem prejudicar a sequência lógica das ações? O que tirar? Por onde começar?
       O texto abaixo, versão sintetizada do texto inicial, baseou-se numa técnica interessante, que pode ser adotada por você. Ela consiste em concentrar toda a narrativa numa única cena, obviamente a em que ocorre o clímax. No caso em questão, a narrativa inicia-se na cena em que os personagens se encontram no terraço. 
     Algumas informações importantes para a manutenção do sentido da narrativa foram incluídas nas falas dos personagens, transcritas em forma de discurso direto, estratégia que dispensa explicações por parte do narrador, abreviando, com isso, parágrafos inteiros.
       Embora os períodos, nessa versão reduzida, sejam mais curtos e diretos - já que alguns detalhes descritivos foram eliminados, estando a linguagem, portanto, mais desprovida de adjetivação e de conotação -, nenhum dado importante é suprimido ou negligenciado, e o desfecho é autoexplicativo: o rapaz encarregado de eliminar uma atraente e experiente assassina é também por ela eliminado. Desfecho inevitável para ambos os personagens (dada a “missão” por eles desempenhada), ele, no entanto, é revelado para o rapaz e para o leitor apenas no final.
     Outros pequenos ajustes, como a mudança do nome do carro (de Lamborghini Murcielago para Ferrari), em nome da economia de espaço, mas sem prejuízo da história, já que se trata de automóveis caros, são plenamente justificáveis.
       Quer ver o resultado? Então economize tempo e passe à leitura já!



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Aposentadoria (síntese)
Marcelo Ferreira de Menezes


A chuva cessara. A lua tentava vencer as nuvens, brilhando nas poças d'água no chão do terraço. A pouca luz lhe permitiu perceber que, apesar da idade, ela ainda conservava a beleza que vitimara tantos: pele marmórea, cabelos ruivos e olhos traiçoeiramente verdes. Pensou que a havia perdido, mas ali estava ela.
Rorim... Rorim... Kenrob ‒ ele avançou em direção à mulher junto ao parapeito.
Ora ‒ ela o fitou altiva. Você até que é bem moço... para tanta ousadia. Mandar rosas vermelhas para suas vítimas... Bem... eu poderia ter fugido, como todos fazem.
Ele, cauteloso, acercou-se dela e devolveu a provocação:
E para onde você iria? Não é seu estilo. Você não temeria o final que entregou a tantos. Mas, sim, a fuga aumenta o prazer de nossa... missão. E todos nós não fazemos isso? Dar-lhes um aviso? Qual é... era o seu?
Ela se virou e mirou os convidados que, lá embaixo, se divertiam na festa de réveillon. Tirou da bolsa um estojo espelhado e retocou o batom. O espelho rachado ali e o fato de que vira outros a caminho do terraço fez o rapaz pensar: "Espelhos quebrados: sinal de azar, Rorim".
Esse é o final? ‒ ela perguntou. Depois de tudo, mandam-nos um cleaner? ‒ e mais séria ‒ Tem um cigarro?
Ele soltou o estilete de sua mão enfiada no bolso. "É melhor assim", pensou. Degolar aquela mulher seria outro crime. Deu-lhe um de sua cigarreira. Ela tragou fortemente.
Então? Como vai ser? ‒ tossiu, descontrolando-se.
Já está sendo. O cigarro... Você sabe; cianureto...
A mulher caiu sem vida ao chão. Ele depositou uma rosa vermelha sobre o cadáver da maior de todas as assassinas da Europa e saiu dali.
No estacionamento, percebeu que o espelho retrovisor de sua Ferrari estava partido. Praguejou; alguns milhares de dólares de prejuízo. Entrando no carro, viu que o interno também estava. Um rasgo frio atingiu sua coluna. Na conversa de há pouco, sua pergunta não ficara sem resposta. "Rorim Kenrob...", ele repetiu mecanicamente. "Kenrob...", "Ken...", "broken...", "broken mirror!", ele decifrou o anagrama. Tarde demais: a Ferrari subia aos céus numa poderosa explosão, misturando-se o estrondo aos fogos de artifício da meia-noite. A chuva voltou a cair mais forte.