Após ler o texto Aposentadoria,
na coluna Ler e-maginar, você pode pensar: “Mas é mais fácil
fazer um texto narrativo quando não há um limite de linhas”. De
fato, algumas contingências de ordem prática, como um número
máximo de linhas a se respeitar, acabam limitando a capacidade
expressiva e impondo certas restrições que dificultam a criação
de uma narrativa verossímil por parte de um produtor de texto menos experiente.
Pensando nessa dificuldade comum a
todos os alunos especialistas, resolvemos fazer esta postagem para
orientá-lo na tarefa desafiadora de “enxugar” o texto narrativo.
Primeiramente,
é imprescindível se admitir que todo e qualquer fato é passível
de análise e de síntese; em outras palavras, todo fato pode ser
desmembrado em inúmeros outros fatos que o antecederam e que o
sucederam e, ao contrário, ser reduzido ao menor número possível
de eventos a ele relacionados. Isso porque, no mundo real, no qual
vivemos, o fluxo de acontecimentos é infinito e ininterrupto. Por
exemplo, você pode dizer simplesmente: Hoje, pela manhã,
como habitualmente faço, arrumei-me, tomei meu café da manhã e
dirigi-me ao meu trabalho.
Mas
você pode desmembrar esses fatos em outros: Hoje, ao abrir
os olhos após uma noite de sono restabelecedor, logo pela manhã,
mais exatamente às 6h02min, sentei-me na minha cama, calcei meus
confortáveis chinelos, não sem antes bocejar e me espreguiçar, fui
até ao banheiro, fiz minha ablução matinal, tirei meu pijama,
coloquei meu uniforme para somente então tomar meu café da manhã.
Após alimentar-me, escovei meus dentes, passei um perfume, peguei as
chaves do carro, tirei-o da garagem e dirigi-me ao meu trabalho. Lá
chegando, estacionei o veículo, tranquei-o, subi as escadas até
chegar à minha sala de trabalho. Ao adentrá-la, cumprimentei meus
colegas presentes, sentei-me à minha mesa, liguei meu computador e
comecei a trabalhar.
E
pode, igualmente, reduzi-los: Hoje, após o café da manhã,
fui trabalhar.
Como se pode ver, não há um padrão para o encadeamento das ações; o que determinará a sequência dos
fatos e o ritmo imprimido a eles ao serem transcritos para o papel
será o olhar do narrador, guiado pelos objetivos e intenções
previamente estabelecidos. No caso de uma narração feita para ser
avaliada, além das exigências textuais propriamente ditas, é
preciso se levar em conta a abordagem do tema e o limite máximo de
linhas.
Voltando
ao texto Aposentadoria,
como fazer para diminuí-lo sem
prejudicar a sequência lógica das ações? O que tirar? Por onde
começar?
O texto abaixo, versão sintetizada
do texto inicial, baseou-se numa técnica interessante, que pode ser
adotada por você. Ela consiste em concentrar toda a narrativa numa
única cena, obviamente a em que ocorre o clímax. No caso em
questão, a narrativa inicia-se na cena em que os personagens se
encontram no terraço.
Algumas informações importantes para a manutenção do sentido da narrativa foram incluídas nas falas dos personagens, transcritas em forma de discurso direto, estratégia que dispensa explicações por parte do narrador, abreviando, com isso, parágrafos inteiros.
Embora os períodos, nessa versão reduzida, sejam mais curtos e diretos - já que alguns detalhes descritivos foram eliminados, estando a linguagem, portanto, mais desprovida de adjetivação e de conotação -, nenhum dado importante é suprimido ou negligenciado, e o desfecho é autoexplicativo: o rapaz encarregado de eliminar uma atraente e experiente assassina é também por ela eliminado. Desfecho inevitável para ambos os personagens (dada a “missão” por eles desempenhada), ele, no entanto, é revelado para o rapaz e para o leitor apenas no final.
Algumas informações importantes para a manutenção do sentido da narrativa foram incluídas nas falas dos personagens, transcritas em forma de discurso direto, estratégia que dispensa explicações por parte do narrador, abreviando, com isso, parágrafos inteiros.
Embora os períodos, nessa versão reduzida, sejam mais curtos e diretos - já que alguns detalhes descritivos foram eliminados, estando a linguagem, portanto, mais desprovida de adjetivação e de conotação -, nenhum dado importante é suprimido ou negligenciado, e o desfecho é autoexplicativo: o rapaz encarregado de eliminar uma atraente e experiente assassina é também por ela eliminado. Desfecho inevitável para ambos os personagens (dada a “missão” por eles desempenhada), ele, no entanto, é revelado para o rapaz e para o leitor apenas no final.
Outros pequenos ajustes, como a
mudança do nome do carro (de Lamborghini Murcielago para
Ferrari), em nome da economia de espaço, mas sem prejuízo da
história, já que se trata de automóveis caros, são plenamente
justificáveis.
Quer
ver o resultado? Então economize tempo e passe à leitura já!
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Aposentadoria
(síntese)
Marcelo
Ferreira de Menezes
A
chuva cessara. A lua tentava vencer as nuvens, brilhando nas poças
d'água no chão do terraço. A pouca luz lhe permitiu perceber que,
apesar da idade, ela ainda conservava a beleza que vitimara tantos:
pele marmórea, cabelos ruivos e olhos traiçoeiramente verdes.
Pensou que a havia perdido, mas ali estava ela.
‒
Rorim... Rorim... Kenrob ‒ ele
avançou em direção à mulher junto ao parapeito.
‒ Ora
‒ ela o fitou altiva. Você até que é bem moço... para tanta
ousadia. Mandar rosas vermelhas para suas vítimas... Bem... eu
poderia ter fugido, como todos fazem.
Ele,
cauteloso, acercou-se dela e devolveu a provocação:
‒ E
para onde você iria? Não é seu estilo. Você não temeria o final
que entregou a tantos. Mas, sim, a fuga aumenta o prazer de nossa...
missão. E todos nós não fazemos isso? Dar-lhes um aviso? Qual é...
era o seu?
Ela
se virou e mirou os convidados que, lá embaixo, se divertiam na
festa de réveillon. Tirou da
bolsa um estojo espelhado e retocou o batom. O espelho rachado ali e
o fato de que vira outros a caminho do terraço fez o rapaz pensar:
"Espelhos quebrados: sinal de azar, Rorim".
‒ Esse
é o final? ‒ ela perguntou. Depois de tudo, mandam-nos um cleaner?
‒ e mais séria ‒ Tem um cigarro?
Ele soltou o estilete de sua mão
enfiada no bolso. "É melhor assim", pensou. Degolar aquela
mulher seria outro crime. Deu-lhe um de sua cigarreira. Ela tragou
fortemente.
‒ Então? Como vai ser? ‒ tossiu,
descontrolando-se.
‒ Já está sendo. O cigarro... Você
sabe; cianureto...
A mulher caiu sem vida ao chão. Ele
depositou uma rosa vermelha sobre o cadáver da maior de todas as
assassinas da Europa e saiu dali.
No estacionamento, percebeu que o
espelho retrovisor de sua Ferrari estava partido. Praguejou; alguns
milhares de dólares de prejuízo. Entrando no carro, viu que o
interno também estava. Um rasgo frio atingiu sua coluna. Na conversa
de há pouco, sua pergunta não ficara sem resposta. "Rorim
Kenrob...", ele repetiu mecanicamente. "Kenrob...",
"Ken...", "broken...", "broken mirror!",
ele decifrou o anagrama. Tarde demais: a Ferrari subia aos céus numa
poderosa explosão, misturando-se o estrondo aos fogos de artifício
da meia-noite. A chuva voltou a cair mais forte.