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Tema
narrativo
Conte uma história
na qual você seja vítima de um mal-entendido.
Instinto
selvagem
Marcelo
Ferreira de Menezes
"Viver é um negócio muito perigoso", disse uma vez o mestre Guimarães Rosa em seu mais famoso romance.
Eu acrescento: viver em cidade grande é duplamente perigoso. Um
gesto tolo pode atirar o sujeito no meio de uma tragédia. No meu
caso, foi um movimento repetido a raiz de um ataque de instinto
selvagem. Explico.
Eu devia ter uns vinte e
três anos e, após o meu expediente de digitador em uma empresa de
banco de dados, estava aguardando meu ônibus, no bairro de Botafogo,
no Rio de Janeiro. Dei sinal para um que passou após longos trinta
minutos. O motorista fez cara de mau para mim e só parou uns cem
metros depois. Eu pensei que era demais, naquela hora do dia,
cansado, ainda ter de andar aquilo tudo para entrar em ônibus lotado
e decidi não ir até lá.
― É melhor você
correr; o motorista vem aí ― sussurrou uma voz.
Virei-me para ver quem
dava o alerta. Alguém que esperava também a condução me
prevenira. Realmente vi o motorista daquele ônibus vindo em minha
direção, mas sinceramente não encontrei nenhum motivo para sair
dali.
Ele, o motorista, com um
dragão no olhar, sem dizer uma só palavra, segurou meu colarinho e,
com uma rasteira precisa, me jogou no chão. Montado sobre minha
barriga, ele conseguiu imobilizar meu braço direito, mas, para minha
sorte e infelicidade dele, não o meu esquerdo.
Seu rosto estava livre
diante de meu punho, que, com força e velocidade desconhecidas para
mim até então, que nunca havia brigado na vida, castigaram toda a
face do condutor, transformando-a numa massa amorfa e sanguinolenta.
Ouvi o ruído surdo de seu nariz se quebrando. Atônito, ele caiu para o
lado, dando-me chance para ficar de pé, bem a tempo de me esquivar
de um pontapé dado pelo cobrador desse motorista, que veio tomar as
dores do colega. Corri o mais que pude, apavorado, pois outros já
chegavam em defesa do homem ensanguentado. Enfiei-me no primeiro
ônibus que passou de porta aberta e consegui escapar daquele
inferno.
No dia seguinte, na
companhia de um advogado, fui à empresa de ônibus colher as devidas
satisfações. Eu simplesmente não conseguia entender o que se
passara. Teria eu sido confundido com um ladrão? Talvez com algum
desafeto daquele motorista?
Trouxeram-no. Pude
constatar que, conforme dizem, os ferimentos ficam piores no dia
seguinte. O motorista tinha mais ares de vítima do que eu.
Inquirido sobre o porquê
de seu acesso de fúria, ele rugiu:
― Ele ― apontou para
mim ― não deveria ter me mostrado o dedo. Ele fez assim, ó! ― e
exemplificou com o conhecido sinal feito com o dedo médio.
De imediato confesso que
fiquei sem entender. Mas, logo em seguida, um clarão iluminou minha
mente.
Os repetidos movimentos
de digitação acabaram por lesionar parte dos músculos de minha mão
direita, caso conhecido por LER (Lesão por Esforço Repetitivo) e
produziram um calombo na parte externa dela que me impedia de dobrar
os dedos com eficiência, ficando estendido o dedo médio, no momento
em que dei sinal para o ônibus. Tudo fruto de um mal-entendido.
Depois de minhas
explicações e de ter mostrado a mão lesionada, o motorista,
desarmado, olhou para o chão, visivelmente vexado. Eu resolvi não
dar queixa. Afinal, ele já havia pagado um preço bem caro por seu
destempero.