Tensão e fúria (Em 11/04/13)

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Tema narrativo

Conte uma história na qual você seja vítima de um mal-entendido.


Instinto selvagem
Marcelo Ferreira de Menezes

"Viver é um negócio muito perigoso", disse uma vez o mestre Guimarães Rosa em seu mais famoso romance. Eu acrescento: viver em cidade grande é duplamente perigoso. Um gesto tolo pode atirar o sujeito no meio de uma tragédia. No meu caso, foi um movimento repetido a raiz de um ataque de instinto selvagem. Explico.
Eu devia ter uns vinte e três anos e, após o meu expediente de digitador em uma empresa de banco de dados, estava aguardando meu ônibus, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Dei sinal para um que passou após longos trinta minutos. O motorista fez cara de mau para mim e só parou uns cem metros depois. Eu pensei que era demais, naquela hora do dia, cansado, ainda ter de andar aquilo tudo para entrar em ônibus lotado e decidi não ir até lá.
É melhor você correr; o motorista vem aí ― sussurrou uma voz.
Virei-me para ver quem dava o alerta. Alguém que esperava também a condução me prevenira. Realmente vi o motorista daquele ônibus vindo em minha direção, mas sinceramente não encontrei nenhum motivo para sair dali.
Ele, o motorista, com um dragão no olhar, sem dizer uma só palavra, segurou meu colarinho e, com uma rasteira precisa, me jogou no chão. Montado sobre minha barriga, ele conseguiu imobilizar meu braço direito, mas, para minha sorte e infelicidade dele, não o meu esquerdo.
Seu rosto estava livre diante de meu punho, que, com força e velocidade desconhecidas para mim até então, que nunca havia brigado na vida, castigaram toda a face do condutor, transformando-a numa massa amorfa e sanguinolenta. Ouvi o ruído surdo de seu nariz se quebrando. Atônito, ele caiu para o lado, dando-me chance para ficar de pé, bem a tempo de me esquivar de um pontapé dado pelo cobrador desse motorista, que veio tomar as dores do colega. Corri o mais que pude, apavorado, pois outros já chegavam em defesa do homem ensanguentado. Enfiei-me no primeiro ônibus que passou de porta aberta e consegui escapar daquele inferno.
No dia seguinte, na companhia de um advogado, fui à empresa de ônibus colher as devidas satisfações. Eu simplesmente não conseguia entender o que se passara. Teria eu sido confundido com um ladrão? Talvez com algum desafeto daquele motorista?
Trouxeram-no. Pude constatar que, conforme dizem, os ferimentos ficam piores no dia seguinte. O motorista tinha mais ares de vítima do que eu.
Inquirido sobre o porquê de seu acesso de fúria, ele rugiu:
Ele ― apontou para mim ― não deveria ter me mostrado o dedo. Ele fez assim, ó! ― e exemplificou com o conhecido sinal feito com o dedo médio.
De imediato confesso que fiquei sem entender. Mas, logo em seguida, um clarão iluminou minha mente.
Os repetidos movimentos de digitação acabaram por lesionar parte dos músculos de minha mão direita, caso conhecido por LER (Lesão por Esforço Repetitivo) e produziram um calombo na parte externa dela que me impedia de dobrar os dedos com eficiência, ficando estendido o dedo médio, no momento em que dei sinal para o ônibus. Tudo fruto de um mal-entendido.
Depois de minhas explicações e de ter mostrado a mão lesionada, o motorista, desarmado, olhou para o chão, visivelmente vexado. Eu resolvi não dar queixa. Afinal, ele já havia pagado um preço bem caro por seu destempero.