Mas o tema não ajuda, professor! (Em 16/05/12)

       São vários os desafios com os quais os alunos se deparam diante da missão de fazer uma (boa) narração. Você que tem acompanhado as postagens sobre essa tipologia textual já deve ter percebido que, de fato, uma narração exige um planejamento, um projeto de texto que ajude o produtor (no caso, o aluno) a elaborar a história.

       Mas, além dessas exigências, existe um fator extratextual igualmente determinante do êxito ou do fracasso da narrativa: o tema. Será? Realmente, existem temas que parecem favorecer a elaboração de um texto narrativo, por incitarem mais a criatividade do aluno diante da diversidade de situações conflituosas que possibilitam. É o caso, por exemplo, de temas cujos personagens ou cujo narrador são animais ou objetos personificados.

       Já outros temas parecem estrangular essa capacidade de imaginação, praticamente “obrigando” os alunos a tecerem o mesmo enredo, altamente previsível e, por esse motivo, desgastado e desgastante, pois, em nenhum momento, instiga a curiosidade do leitor, chegando até mesmo a subestimar sua inteligência. O resultado são textos cansativos, muitas vezes inverossímeis que quase sempre redundam num relato insípido.

       Este foi o caso do seguinte tema narrativo sugerido numa prova no Curso de Redação da EEAR:


       “Crie uma narrativa, em primeira pessoa, em que o trecho abaixo seja inserido, de forma coerente, em qualquer momento do texto.
       Ainda bem que perdi aquele voo!


       Ao se interpretar o tema, uma das primeiras ideias que vêm à cabeça é a de uma queda do avião, não é? E quantos alunos, numa sala de quarenta, você acha que tiveram a mesma ideia? A metade, pelo menos? E dessas vinte redações, quantas conseguiram surpreender o avaliador? Todas? Certamente não. Na verdade, nenhuma delas, pois, para esse tema, é apenas óbvio que tomar conhecimento da queda do avião no qual se iria embarcar seja o clímax. Nesse caso, onde fica a surpresa, o elemento revelador da trama, que prende a atenção do leitor e justifica a leitura do texto? Simplesmente não há, e a sensação que se tem é a de que a leitura desse texto não fez a menor diferença, pois não acrescentou absolutamente nada ao conhecimento de mundo do leitor.

      Isso sem falar em outros enredos que tentam “tapeá-lo” com fatos inverossímeis ou oportunistas, ou seja, que apelam para o piegas ou que se encaixam em qualquer tema.

       Exemplos:
* O personagem é demitido porque perdeu o voo e, diante disso, volta para casa e aproveita para passar um dia inesquecível com a família, experiência que o enche de profunda alegria.
* Ao perder o voo, o personagem encontra o amor de sua vida numa conversa com uma pessoa no aeroporto até então desconhecida.
* Após ter perdido o voo, o personagem é informado de que conseguiu o emprego tão almejado, e o desfecho é... Ainda bem que perdi aquele voo!


       Então esse é um tema para o qual não há enredo que se constitua numa narrativa interessante. Engano! De qualquer tema ou de um fato casual pode se construir uma narrativa, como comprovam os três textos a seguir, feitos a partir do tema analisado acima.


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O voo de um anjo

Prof. Marcelo Ferreira de Menezes


       Como representante comercial de uma importante empresa desenvolvedora de projetos urbanísticos, acostumei-me a estar sempre viajando. Praticamente era um lugar diferente por semana. O salário, para um rapaz solteiro como eu, era muito bom, o que me garantiu um confortável apartamento no Jardins, bairro chique de São Paulo. Eu estava com tudo pronto para partir em mais uma jornada. O destino era Nova York. Decidi pegar o primeiro voo daquela segunda-feira; um táxi me levaria até o aeroporto.
       Durante o trajeto, fomos surpreendidos por um fluxo de trânsito anormal para aquela hora da manhã. O motorista ligou o rádio, e ficamos sabendo que havia ocorrido um acidente: parte de um viaduto desabara nas primeiras horas do dia, e a cidade estava um caos. Sugeri que ele pegasse outro caminho então, que evitasse a marginal, mas já era tarde demais; estávamos encurralados. A hora do voo estava praticamente estrangulada; seria impossível chegar ao aeroporto a tempo de embarcar no avião.
       Vendo que iria mesmo perder a viagem, paguei a corrida até ali e, conformado, atravessei algumas ruas a pé até chegar ao metrô e segui rumo a meu apartamento. Perder o voo não era algo que fosse me trazer complicações. Bastaria trocar a passagem para o dia seguinte. Chegar a Nova York com um dia de atraso não atrapalharia em nada meus planos.
       À portaria do prédio, acenei para o porteiro para que ele me abrisse o portão eletrônico. Cumprimentei-o ao passar pela guarita e, quando estava atravessando o jardim da entrada, quase alcançando a porta de vidro do prédio, senti uma pancada forte na cabeça; um peso violento que quase quebrou meu pescoço. Apaguei na mesma hora.
       Dizem que dormi por quase duas horas.
       Quando acordei, eu estava num leito de hospital. Um médico, um rapaz de uns vinte e poucos anos, sorria para mim.
       ― Mas que cabeça dura, hein? ― brincou ele, olhando para o prontuário.
       ― O que que eu... Ah! Já me lembro! Alguma coisa caiu na minha cabeça ― eu falei levando a mão ao topo doído dela.
       ― É ― falou o jovem médico. ― Ainda bem que não quebrou.
       ― O que foi que me acertou, doutor? Um vaso de flores, um ferro de passar roupas, um piano ou um elefante? ― eu brinquei.
       ― Há mais coisas que caem do céu; como anjos, por exemplo.
       ― Não entendi.
       ― Espera, que eu já trago o que quase te matou.
       Ele saiu da sala e, logo em seguida, voltou com o que tinha caído sobre mim. Era um menininho de uns cinco anos, moreninho, com o braço engessado e olhar assustado.
       ― Foi esse artista aqui que tava tentando dar uma de super-homem ― disse passando a mão na cabeça do guri.
       A mãe do menino o acompanhava. Era jovem e bem bonita. Eu a reconheci imediatamente. Era a minha vizinha de cima. Vivia sozinha com o filho. Com certo acanhamento, ela se dirigiu a mim:
       ― Eu vim agradecer ao senhor. Se não fosse o senhor ali, o Oswaldinho tinha caído direto no chão e só Deus sabe o que teria acontecido. O senhor amorteceu a queda. Eu realmente não tenho como lhe agradecer.
       Depois, olhando para o menino:
       ― E o senhor nunca mais suba na grade da varanda! ― repreendeu-o firme, mas com certo mel na voz.
       Eu tentei amenizar:
       ― Ah, que isso! Acho que eu é que tenho que agradecer por ele ter me dado a chance de me tornar um herói. “E também por algo que não posso dizer agora”, pensei.
      E fiquei observando aquela bela mulher e seu doce filhinho de braço quebrado. No meu íntimo, feliz, vendo que eu fora o responsável por estarem ambos bem, pensei: “Ainda bem que perdi aquele voo!”.

       Nessa narrativa que acabamos de ler, o fato inusitado de salvar a vida de um menino justifica plenamente o alívio sentido pelo personagem por perder o voo, o qual, aliás, nem era tão importante assim. Uma certa atração do narrador-personagem pela mãe do menino é até sugerida, mas, diferentemente do segundo enredo citado anteriormente como exemplo, não é abordada de maneira piegas e tampouco é utilizada como clímax para a trama.

       Vejamos o próximo texto:




portugues.torange.biz



Quando se ganha em se perder
Prof. Marcelo Ferreira de Menezes

       Tenho muito medo de voar. Praticamente passei a vida toda viajando de ônibus. Jamais havia cogitado a possibilidade de entrar em um avião; até aquele dia.
       Eu já estava trabalhando há alguns anos numa pequena firma de contabilidade. Apesar de ainda não ser o emprego dos sonhos, consegui juntar umas economias. Com isso, pude, além de mobiliar confortavelmente minha casa alugada, comprar um carro do ano. Devia praticamente tudo à confiança que meu chefe sempre depositara em mim. Por isso, não pude negar-lhe um pedido: viajar a Miami para resolver um assunto seu pendente; questões de herança.
       Mesmo com muito medo, tirei meu passaporte, comprei as passagens e preparei a bagagem. No dia da viagem, eu estava tão nervoso, que me atrapalhei em quase todas as tarefas simples do dia: deixei o leite do café-da-manhã derramar, esqueci o fogão com o fogo aceso, abri o chuveiro e me esqueci de entrar para tomar banho, além de outras mancadas. Mesmo com todas essas trapalhadas, não me esqueci de deixar Boris, meu gato siamês, no hotelzinho de animais.
       Ao retornar para casa, esquentei, pela última vez, o motor do carro, só por precaução, já que eu iria ficar fora durante quinze dias, coloquei as malas no portão e fiquei esperando o táxi, que não demorou a chegar.
       No aeroporto, entrei na fila do check-in e fiquei esperando minha vez de ser atendido. Quando finalmente ela chegou, a atendente solicitou:
       ― Seu passaporte, por favor.
       ― Pois não ― disse, enquanto enfiava a mão no bolso do terno.
       Devo ter ficado branco ou verde, pois, na mesma hora, a atendente quis saber se eu estava passando bem. O passaporte simplesmente não estava no bolso do paletó. Revirei a mala, as sacolas; nada. “Era só o que me faltava!”, pensei. “Vou perder o diabo do voo!”. E perdi mesmo.
       Liguei para o meu chefe e expliquei a situação. Ele compreendeu, mas não deixou de me dar um puxão de orelhas. Eu troquei a passagem para o dia seguinte e voltei para casa.
       O táxi parou em frente ao meu portão, e o taxista me ajudou a desembarcar as malas. Dei-lhe uma gorjeta pelo serviço, e ele se foi.
       Mais uma vez, levei a mão ao bolso do terno procurando o molho de chaves para entrar em casa. Gelei novamente: não estava lá. Dessa vez eu gritei mesmo:
       ― Mas que diabos! Deve ter um infeliz de um duende me perseguindo!
       Fucei as malas novamente, e nada. Já estava indo chamar um chaveiro, quando olhei para a fechadura do portão. Só aí pude perceber algo prateado balançando ao vento diante do meu nariz. O molho de chaves estava simplesmente engatado à fechadura do portão. Ao fechá-lo, no momento de minha saída pela manhã, esquecera-me de o tirar dali. Tudo fruto da perturbação na qual me encontrava, da ansiedade e do medo de voar.
       Pensando no que poderia ter acontecido a partir daquele lamentável descuido ― ladrões, no mínimo, terem entrado e levado simplesmente, e com a maior facilidade, tudo o que eu havia conquistado com muito esforço, inclusive meu carro ― não pude deixar de pensar: “Ainda bem que perdi aquele voo!”.

       Temos aí mais outro exemplo de um enredo que não se rende ao óbvio: um homem que, diante da necessidade de viajar de avião, fato que o apavorava, mas do qual não podia se furtar, se vê todo atrapalhado e, em razão disso, acaba perdendo o voo e as chaves de casa. Ao constatar que as havia esquecido na fechadura da sua porta do lado de fora, alegra-se com o fato de ter perdido o voo, pois, do contrário, tudo o que havia conseguido com muito esforço poderia ter sido roubado. Detalhe: o chefe não o demitiu pelo fato de ele ter perdido o voo.

       Vejamos, ainda, um último texto:




caninablog.wordpress.com



O susto

Prof. Marcelo Ferreira de Menezes

       Quando o celular do serviço tocou, eu quase tive vontade de jogá-lo pela janela. Era meu primeiro dia de férias, estava um calor dos infernos e eu já estava de malas prontas para ir para Cancun. Só podia significar uma coisa aquele chamado: minhas férias não iriam começar ali.
       Amaldiçoei-me por não o ter deixado desligado de uma vez. Era meu chefe, dizendo que eu tinha que embarcar naquele mesmo instante para a Argentina, pois tinha um abacaxi que só eu podia descascar. Era sempre assim; quem mandou eu ser bom no que faço?
       Bom, eu tinha de ir mesmo para o aeroporto. E o pior é que tive de reorganizar tudo, já que, ao invés de um país quente, o que me aguardava, a partir dali, era o frio argentino. Tudo bem; recebendo o que eu recebia no final do mês...
       Levei tudo para meu carro. Eu nunca gostei de táxis. Taxistas não calam a boca, e eu preferia ir me deleitando no caminho ao som de um bom jazz. Ir em meu próprio carro tinha ainda outra vantagem: como ele ficaria estacionado no estacionamento do aeroporto, na volta ele já estaria lá me esperando. A conta dos dias em que ele permaneceria lá era alta, mas o conforto não nasceu para ser barato; conforto é para quem pode.
       Antes de ir para o aeroporto, eu tinha de deixar Chopp, meu pequeno amigo schnauzer, no hotelzinho para animais. Coloquei as malas no banco de trás de minha Mercedes e a caixa de transporte de Chopp no porta-malas; se Chopp fizesse xixi durante o trajeto, não iria querer que ele vazasse para os meus bancos de couro. Peguei a via expressa e, distraído com a música, pesei um pouco o pé no acelerador. Não demorou muito, eu ouvi a sirene das motos da ROCAM.
       A conversa com os policiais me custou uma pesada multa e uns bons quarenta minutos de atraso. Isso foi o suficiente para me deslocar de uma situação confortável com relação ao tempo de chegada para a retirada de minha passagem, que já estava me aguardando no guichê da empresa aérea. Resolvida a situação com os patrulheiros, segui rumo ao meu destino.
       Chegando ao aeroporto, apresentei-me no guichê. A atendente foi direta:
       ― O seu voo acabou de decolar.
       ― Cê tá brincando.
       ― Mas o senhor pode trocar para o próximo horário, se quiser.
       Eu não quis. Achei melhor deixar para o dia seguinte. Liguei para meu chefe e, simplesmente, contei o que acontecera. Ele riu, disse que só eu mesmo, que eu estava era inventando, me chamou de cachorrão. E foi então que eu tomei o maior susto. Desliguei o celular sem nem me despedir e saí como um louco correndo pelo saguão do aeroporto.
       Esbaforido, cheguei ao subsolo, onde se localizava a garagem, e encontrei meu Mercedes. Trêmulo, abri o porta-malas e dei de cara com o focinho de Chopp, babando de calor e com os olhos saltados de medo.
       No mínimo, eu ficaria na Argentina por duas semanas. Tudo acabou não passando de um baita susto. Mas o que teria sido de Chopp se eu tivesse subido naquele avião eu nem quis imaginar. Abraçado ao meu pequeno amigo, pedindo-lhe um milhão de desculpas, eu só conseguia pensar: “Ainda bem que perdi aquele voo!”.

       Novamente o fato que torna coerente a frase “Ainda bem que perdi aquele voo!” não apela ao lugar-comum do acidente aéreo. O narrador-personagem, envolvido pelos acontecimentos que o atrasaram para chegar ao aeroporto e que, consequentemente, o fizeram perder o voo, acabou esquecendo seu cachorro de estimação no porta-malas do carro e, fatalmente, se ele tivesse embarcado, um outro acidente igualmente terrível teria acontecido: seu animalzinho teria morrido asfixiado.

       Viram? Aparentemente o tema não proporciona muitas alternativas, mas o escritor perspicaz, que sabe tirar das “aparentes” trivialidades da vida o substrato necessário para recriar a realidade, é capaz de construir uma história interessante, porque verossímil e não previsível.

       Exercite a sua capacidade de imaginação. Os fatos estão aí, bem diante dos seus olhos. Viva. Experimente. Observe. Escreva.


VOCÊ PODE!



LetrasEEARtes: porque a vida supera a arte, mas
                                           a arte também alimenta a vida.