E por falar em imaginação... (Em 14/10/11)

           E o que são, afinal, as histórias, senão a maneira peculiar de se (re)tratar a realidade, filtrada pelas emoções, sensibilidade e imaginação criadora de quem se propõe a contá-las?
           Prova disso é o texto Raízes, adaptação feita pelo professor Marcelo Menezes do texto Amor Proibido, que serviu como base de análise na postagem anterior.
           Por meio de uma descrição dinâmica, envolvente e cheia de sugestões, o narrador convida o leitor a uma imersão nos acontecimentos vividos pelas personagens, sem, no entanto, revelar-lhe do que se trata. À medida que as ações se desenrolam, o leitor vai tomando conhecimento dos fatos e levantando suas conclusões, induzidas pelas pistas fornecidas pelo narrador ao longo do texto.
           Recheada de simbologias, a narrativa de Raízes, cujo enredo é o mesmo de Amor Proibido, oferece outras dimensões de leitura, tão sutis quanto o deve ser o olhar do leitor.
           Boa leitura!


Raízes
Adaptação, pelo professor Marcelo Ferreira de Menezes,
do texto Amor proibido
Os pés brancos e delicados, ainda que em parte envolvidos pelo cetim das sapatilhas, eram aos poucos castigados pelas mordidas dos espinhos que o caminho ia lhe deitando pela frente. Corria, e o suor era mais gelado, como eram gelados os golpes de medo em seu coração ainda infante. Suas mãos iam afastando como podiam as ásperas folhas que pareciam querer impedir sua carreira quase vertiginosa no breu medonho da noite. As poucas peças de roupa que levava em sua minúscula trouxa improvisada com uma echarpe não poderiam jamais ser chamadas de bagagem; mas era tudo o que ela poderia levar naquela situação. A luz de sua pele branca tremia de ansiedade e desejo de logo encontrá-lo. Seriam, enfim, livres!
Em uma clareira, escondido no negrume das matas, um herói a aguardava; não sem que a noite não fosse mais escura ainda em seu coração, corroído pelo medo e pela angústia de vê-la logo surgindo em segurança. Sua carne negra de pouco valia para aquela sociedade carcomida pela ganância e escravizadora de seu povo; contraditoriamente, seu preço era alto nos mercados. No entanto, ele sabia o quanto valia seu amor e o quanto aquela noite significaria para eles dois. Sua carne negra tremia de aflição, e ainda assim buscava uma rigidez escondida nos mistérios de seus antepassados para que pudesse reagir com força, caso algo saísse errado em seus planos. Enfim, estava prestes a se tornar escravo de seu amor para sempre!
Então, ele a viu surgir pela picada que ladeava o rio. A margem prateada pela lua pareceu receber um clarão de luz mais intenso quando o sorriso da menina irradiou desde os lábios cor de rosa pálida até o calabouço da alma do guerreiro de ébano. Abraçaram-se como se um quisesse do outro ser o guardião; beijaram-se como se acreditassem que, diante daquele beijo, único de amor, a fúria de uma besta perigosa poderia ser abrandada. Sabiam não dispor de muito tempo, mas toda uma eternidade transcorreu no entrelaçamento entre os dois. A cachoeira bramava seu canto volumoso e pujante pela floresta como um poderoso coro a saudar o amor de Juvêncio e Bela. Infelizmente, a natureza os traiu. Antes já tivessem partido.
O som estrepitoso do açoite das águas nas costas das pedras impediu que o casal ouvisse os passos da tragédia que, seguindo os rastros de Bela, alcançou aquela pequena capoeira, onde o Éden há pouco estabelecera novamente seus encantos na Terra.
Tire suas patas imundas de minha filha, negro! ordenou Coronel Firmino.
Papai! Bela gritou, buscando cobrir-se.
Juvêncio tentou ficar de pé para assumir sua posição na batalha, mas o bico de uma bota de couro cru e duro atingiu sua têmpora; desfaleceu imediatamente. Era o capitão-do-mato Benedito Trajano, ou Bené Sete-Velas.
Ê, coronel! e cuspiu preto para o lado. Esse drumiu qui nem donzela! Leva ele pra senzala, sinhô?
Ô, seu imprestável! E eu lá vou continuar alimentando cobra na minha casa, Bené?! Passa fogo nesse negro miserável! ordenou por entre os dentes.
Papai, não! Por favor, papai! Não! ia gritando a moça enquanto era arrastada por dois capatazes de volta à casa grande.
Diante de Juvêncio, caído no chão, Firmino e Bené ainda confabularam:
Tem certeza, Bené?
Sim, sinhô. Vosmicê podi ficá discansadu; os dois se falava pelos canto, lá perto do poço, mas encontrá mesmo foi só aqui, hoje. Eles queria fugi, coroné!
Despacha esse verme! Crioulo! — rugiu o Coronel para o herói abatido.
Um único estrondo enegreceu todas as vozes da noite. A cachoeira por uns instantes também ficou muda, mas foi lentamente retomando seu canto, só que, então, tingido pelas cores de um pesar agudo e irremediável.
Ao chegarem a casa, Bela foi levada até a sala e jogada no chão. Coronel Firmino se sentou em uma poltrona, ao lado da filha, e disse:
           — Jamais te encontrarás com este escravo, jamais o verás novamente! Ainda bem que descobri esse romance logo no início. Cortei o mal pela raiz!
           Bela então levantou seu rosto, limpou as lágrimas e, num tom quase que ameaçador, disse:
          — Se eu fosse o senhor, não teria tanta certeza assim.
O que queres dizer com isso?! Como ousas me desafiar?! Além de perderes a decência, perdeste também o juízo?! Mais uma palavra, e...
         Nesse momento, estando o Coronel prestes a dar-lhe uma bofetada na face, um segundo tiro foi desferido, mas, dessa vez, o peito de Firmino foi o alvo: Bela ruiu em um choro tão sentido, que era como se às suas entranhas estivessem sendo lançadas grandes pedras de carvão em brasa. O Coronel, homem da tessitura do aço, dobrou seus joelhos e tentou amparar a filha, mas ela o repeliu, partindo para seu quarto. Firmino acendeu seu charuto, sentou-se atrás de sua mesa e cofiou a barba.
          — Arrufos! algo em si mesmo tentava convencê-lo. Apenas arrufos de criança! Logo passa! Diabos!
Bela chorou toda a madrugada e mais os dias que completaram sua vida. Seu pai tinha razão: ela jamais veria Juvêncio, seu amado Juvêncio, outra vez; não da forma como o Coronel imaginava. Apesar de seu pai ser um poderoso dono de terras, grande agricultor da Capitania, a menina nessa noite soube que Firmino não entendia nada de raízes e de como extirpá-las; muito menos entenderia algo sobre as misteriosas raízes do amor. Caída em seu quarto, tendo como manto apenas seu fino tecido de lágrimas, Bela abraçava o próprio ventre, acariciando-o. Ela só tinha uma certeza: a de que somente poderia contar consigo mesma como a única guardiã que restara da semente que permitiria a ela e a Firmino estarem diante novamente da força de Juvêncio.


           Este texto é parte integrante das ações do LetrasEEARtes alusivas às comemorações do Dia da Consciência Negra.