Mostrando postagens com marcador Narração. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Narração. Mostrar todas as postagens

Módulo de narração (30/04/2011)

culturadetravesseiro.blogspot.com

Você, que é da primeira série, já iniciou o módulo do curso dedicado aos estudos a respeito dos atributos de um texto narrativo. Portanto, deve estar descobrindo, a cada aula, que existem muitos aspectos técnicos a serem considerados na hora de se compor um texto narrativo de estilo clássico em situações de avaliação. Mas há outras dimensões não físicas nesse tipo de texto (produzido com intuitos avaliativos) para as quais temos chamado sua atenção desde o módulo de descrição.
Sempre reforçamos, em nossas aulas, a necessidade de que você compreenda que todo texto é uma janela através da qual se avista o interior da pessoa que o compôs. Por meio de um texto, o avaliador habilidoso tem a possibilidade de deduzir algumas coisas importantes sobre aquele que escreve: se possui senso de organização, se sabe hierarquizar as ideias com as quais irá trabalhar, se possui maturidade linguística e psicológica, se possui muita ou pouca experiência de vida, se tem proficiência em leitura e conhecimento das várias dinâmicas discursivas passíveis de serem veiculadas em um texto e muitos outros sinais que são transmitidos por meio da linguagem.
Assim, o momento da interpretação de um tema é decisivo para a boa condução do que se irá colocar na folha de papel. A preocupação então é: o que vou veicular no texto a meu respeito para que meu avaliador me identifique como alguém apto para ocupar o lugar que estou pleiteando?
Há uma infinidade de temas que podem ser sugeridos em um processo de avaliação que se valha da narração para cumprir seus propósitos. E você sabe que precisa estar preparado para qualquer um que lhe caia às mãos. Não subestime nenhum tema; qualquer que seja ele, foi feito por profissionais que sabem o que estão buscando. E não existe tema impossível de ser desenvolvido. Tudo pode ser desenvolvido com criatividade.
Veja, por exemplo, a situação seguinte, na qual o tema propõe que animais devam interagir em uma narrativa.


Tema:

tonyaleon.blogspot.com

        Uma formiga estava caminhando tranquilamente rumo ao formigueiro de algumas amigas, quando um enorme elefante se colocou no seu caminho, obstruindo a passagem.
Pode parar aí mesmo! — bradou o elefante com voz poderosa. — Aonde você pensa que vai?
Surpresa, a pequena formiga lançou suas anteninhas em direção ao alto.
Ué! Estou indo visitar umas amigas lá do Formigueirão.
Daqui você não passadisse o paquiderme dando um pisão que reverberou na terra.

        Desenvolva uma narrativa inserindo na íntegra o trecho acima de forma coerente.


Repare que o tema envolve animais que falam e participam de uma dada realidade que os fará interagir. Mas que problema haveria aqui? Que riscos o candidato poderia correr? Bom, nossa experiência tem demonstrado que alguns não sabem aproveitar com muita propriedade um tema como esse, desenvolvendo narrativas cujo resultado é apenas, digamos, infantil, pueril, sem índices de maturidade de quem escreveu. É muito importante perceber que, em situações de avaliação, você não escreverá para uma criança, mas para um adulto hábil em leitura.

Veja o que estamos querendo dizer, lendo o texto que se segue.


A formiga avassaladora que não levava
desaforo para casa contra o paquiderme valentão

        Uma formiga estava caminhando tranquilamente rumo ao formigueiro de algumas amigas, quando um enorme elefante se colocou no seu caminho, obstruindo a passagem.
Pode parar aí mesmo! — bradou o elefante com voz poderosa. — Aonde você pensa que vai?
 Surpresa, a pequena formiga lançou suas anteninhas em direção ao alto.
 — Ué! Estou indo visitar umas amigas lá do Formigueirão.
         — Daqui você não passa — disse o paquiderme dando um pisão que reverberou na terra.
          — Posso saber por quê? — quis saber a formiga.    
          — Eu decido quem vai ou não passar por essa estrada e, ainda assim, somente depois de pagar pedágio. Sou extremamente forte e esmago quem quer que seja com minha pata. Além do quê, eu não temo nada, e não me custaria esforço algum estraçalhar você agora mesmo, sua petulante!
         — Você pode ser muito valente lá pras suas negas, mas comigo é no miudinho! — retrucou a formiga.
          — Ah, é?! — espantou-se o elefante.
          — Vem que eu te mostro, bandido!
         Teve início um combate sangrento e desigual. A formiga era realmente bem menor que o elefante. Só que este ignorava que ela era mestre em “Forming-Fu”, e, após alguns minutos, o paquiderme, cansado de ser sacudido como um saco vazio para todo lado, não teve outra escolha a não ser sair correndo.
        Aproveitando-se de suas habilidades marciais, quem está no comando do pedágio atualmente é esse pequeno mas poderoso inseto.

***
  Apesar de contar uma história e cumprir com algumas expectativas sobre o texto narrativo, ele apela para um humor talvez inadequado para a situação de sua produção, além de ressaltar aspectos negativos. Repare que a formiga soluciona a questão por meio de violência, o que é condenável sob todos os prismas, além de, ao final da narração, passar a ocupar o lugar do elefante no ato desonesto de extorquir dinheiro daqueles que passavam pela estrada. Veja então que não se trata de um problema de linguagem ou de questões gramaticais somente; trata-se da veiculação de valores, que serão representativos das ideias do produtor do texto.
  Vejamos agora este outro exemplo:

Paixão à primeira trombada

        Uma formiga estava caminhando tranquilamente rumo ao formigueiro de algumas amigas, quando um enorme elefante se colocou no seu caminho, obstruindo a passagem.
Pode parar aí mesmo! — bradou o elefante com voz poderosa. — Aonde você pensa que vai?
Surpresa, a pequena formiga lançou suas anteninhas em direção ao alto.
Ué! Estou indo visitar umas amigas lá do Formigueirão.
         — Daqui você não passa — disse o paquiderme dando um pisão que reverberou na terra.
         — Ai, adorei!
         O elefante ficou confuso.
         — O que foi que você adorou?
         — Sei lá. Esse seu jeito másculo de ser. Isso mexe comigo, sabe? — disse a formiga revirando os olhinhos.
         O elefante olhou bem para o pequeno inseto e reparou que ela era bem jeitosa.
         — Sabe, estive pensando — provocou o elefante. — Que tal dar um passeio em minha tromba?
         Foi amor à primeira trombada. Os dois se casaram e tiveram um casal de filhos: uma formiga gigantesca, que, em vez de antenas, exibia uma belíssima tromba, e um elefante de seis patas do tamanho de e preto como um besouro. E foram felizes para sempre.

***

         Aqui temos o tema sendo resolvido por uma situação também sem atributos que revelem algo de positivo sobre o escritor, a não ser o bom humor. Mas pode ser o caso de seu avaliador não estar procurando humoristas. Além disso, uma das falas do elefante contém um duplo sentido perigoso quanto ao bom gosto que deve ser condizente com o contexto formal de avaliação. Situações que insinuem erotismo podem depor contra o estilo e são verdadeiras armadilhas para o candidato.

         Qual seria a chave para se trabalhar então com temas que ofereçam animais como personagens? Bom, você já deve ter ouvido falar algo sobre as fábulas. Nelas os animais, comportando-se como humanos, vivem algum conflito cuja resolução deixará para o leitor uma mensagem, cumprindo, dessa forma, com uma função pedagógica, sempre presente nesse tipo de texto. Há sempre uma “moral da história”, não é mesmo? A raposa e as uvas, A tartaruga e a lebre, O sapo e o escorpião são fábulas muito famosas, e possivelmente você deve conhecê-las, além de algumas outras.
         Então, haver animais em um tema não pressupõe que você deva criar uma história infantil ou contar uma piada. Por história infantil entenda-se aquela da qual não é possível sequer retirar uma mensagem que suscite algum tipo de reflexão construtiva, efeito de fato revelador dessa autocrítica madura sobre a qual temos discorrido. E, ao contrário do que se pode pensar, existe muita criança que já apresenta indícios dessa maturidade linguística e psicológica, guardadas, obviamente, as devidas proporções, e adultos que ainda se encontram numa espécie de "infância da leitura". Muitas vezes, a idade cronológica não corresponde à idade psicológica. E isso é facilmente depreendido dos textos pelos leitores mais experientes. Aliás, se atentarmos para o estilo das fábulas, veremos que as lições ali veiculadas se aplicam a todos, principalmente aos adultos, já que constituem ensinamentos sobre a vida, sobre o comportamento humano.
          Veja agora dois exemplos de aproveitamento bem-sucedido desse tema.


Grandes problemas, pequenas soluções

Uma formiga estava caminhando tranquilamente rumo ao formigueiro de algumas amigas, quando um enorme elefante se colocou no seu caminho, obstruindo a passagem.
Pode parar aí mesmo! — bradou o elefante com voz poderosa. — Aonde você pensa que vai?
Surpresa, a pequena formiga lançou suas anteninhas em direção ao alto.
Ué! Estou indo visitar umas amigas lá do Formigueirão.
Daqui você não passa — disse o paquiderme dando um pisão que reverberou na terra.
E eu posso saber por quê? — inquiriu o miúdo inseto.
Eu decido quem vai ou não passar por essa estrada e, ainda assim, somente depois de pagar pedágio. Sou extremamente forte e esmago quem quer que seja com minha pata. Além do quê, eu não temo nada, e não me custaria esforço algum estraçalhar você agora mesmo, sua petulante!
Ai! Essa é nova! — disse aborrecida a formiga.
Não havia o que fazer. Por mais que ela argumentasse, o elefante apenas sacudia negativamente a tromba e exigia o pagamento pela liberação da passagem.
Pensando no que dissera o elefante, a formiga teve uma ideia.
Quer dizer que você não vai me deixar passar?
Não!
Então me faça um favor, sim? Não arrede pé daí, que eu já volto.
O elefante pareceu confuso.
Algumas horas depois, parado na mesma posição, o elefante sentiu um pequeno cutucão na pata.
Ei, gorducho!
Era a formiguinha.
Quero lhe apresentar um amigo meu.
Ao virar a cabeça para o lado oposto do da formiga o elefante gelou e, num pulo, aterrorizado, embrenhou-se pela mata, liberando a estrada.
Após rirem muito, os dois amigos se despediram.
Obrigada, compadre rato. Acho que demos uma baita lição nesse elefante.
Ah! Para você estarei sempre às ordens! E muito obrigado pelo queijo! Tenho certeza de que estará maravilhoso!
Então, a formiga pôde retomar tranquilamente seu caminho com a convicção de que os problemas, por maiores que sejam, às vezes podem possuir uma solução bem simples.

***

Nessa narrativa, aproveitou-se o fato bastante conhecido por todos e explorado inclusive por desenhos animados sobre o peculiar medo que os elefantes têm de animais miúdos, como os ratos. Através das ações que se passam, podemos concluir que ninguém é tão forte e poderoso que não possua alguma fraqueza. A formiga conhecia qual era a do elefante e explorou isso para lhe dar uma lição. O título Grandes problemas, pequenas soluções remete ao título de um programa sobre economia e empreendimento exibido em uma importante emissora de televisão do país: Pequenas empresas, grandes negócios. Isso revela um pouco do conhecimento de mundo do autor e estabelece uma intertextualidade cuja dimensão significativa remete ao campo profissional, econômico, do empreendedorismo.
A mensagem do texto é clara: por maior que seja o problema, ele pode possuir uma solução bem simples. Aliás, muitas soluções simples já sanaram problemas cuja resolução parecia difícil ou, em alguns casos, impossível. Apesar de não ser necessário proceder como nas fábulas, inserindo no último parágrafo uma moral da história, pois a história narrada por você pode muito bem ser autoexplicativa, julgamos necessário aliar ao desfecho algo sobre o conteúdo da mensagem, mas ainda assim de forma narrativa, ao revelar a convicção da formiga sobre essa ideia após todo o ocorrido.


E por último:

A formiga e o elefante

Uma formiga estava caminhando tranquilamente rumo ao formigueiro de algumas amigas, quando um enorme elefante se colocou no seu caminho, obstruindo a passagem.
Pode parar aí mesmo! — bradou o elefante com voz poderosa. — Aonde você pensa que vai?
Surpresa, a pequena formiga lançou suas anteninhas em direção ao alto.
Ué! Estou indo visitar umas amigas lá do Formigueirão.
Daqui você não passa — disse o paquiderme dando um pisão que reverberou na terra.
E eu posso saber por quê? — inquiriu o miúdo inseto.
Eu decido quem vai ou não passar por essa estrada e, ainda assim, somente depois de pagar pedágio. Sou extremamente forte e esmago quem quer que seja com minha pata. Além do quê, eu não temo nada, e não me custaria esforço algum estraçalhar você agora mesmo, sua petulante!
Ai! Essa é nova! — disse aborrecida a formiga.
Não havia o que fazer. Por mais que ela argumentasse, o elefante apenas sacudia negativamente a tromba e exigia o pagamento pela liberação da passagem.
Mas, como todos sabem, as formigas são insetos muito inteligentes, e a formiguinha resolveu tentar uma estratégia.
Gozado!
O que que é gozado? — quis saber o elefante com um olhar simulando enfado.
Daqui de onde me encontro o senhor não me parece assim tão alto, não.
Ah, é? E quem está me falando isso? Uma formiga?! Vê se te enxerga!
Não, é verdade! O senhor é bem baixinho até!
Ah, mas é agora que eu te esmago! — gritou o paquiderme.
Mas a formiga foi mais rápida:
Não, não! Não é preciso violência. Veja: eu posso estar certa ou errada quanto à sua altura. Mas para termos certeza, não seria melhor que o senhor me levantasse com sua tromba acima de sua cabeça? Daí então eu posso calcular exatamente quanto o senhor mede. Se eu estiver errada, prometo que vou em casa buscar dinheiro para pagar em dobro o pedágio.
O elefante gostou da ideia; tinha curiosidade em saber sua altura. Além do mais, ele tinha certeza de que a formiga estava errada, o que lhe renderia um bom pedágio.
Ok! Combinado!
Ele então ergue a formiga acima de sua cabeça.
Mais alto, seu elefante! — pedia a formiguinha. — É; pode descer. Eu estava errada, mesmo. Vou já em casa trazer para você o dinheiro.
E vê se não demora, sua tonta! — bufou o elefante.
Este ficou ali esperando. E deve estar lá até hoje, pois, quando a formiguinha estava nas alturas, em cima de sua tromba e acima da enorme cabeça, pôde enxergar uma outra estrada que passava ao largo e que a levaria ao mesmo destino. Seguiu por ela tranquilamente, com a certeza de que muitas vezes é no próprio problema que podemos encontrar a chave para nos livrarmos dele.

                                                                      ***

As fábulas que narram conflitos dessa natureza (tentativa de se impor algo por meio da força bruta) costumam revelar que as personagens ameaçadas por antagonistas dessa natureza, para se verem livres da situação, contam com sua inteligência. Algum tipo de disputa é proposta, algum jogo mental, um desafio, por meio dos quais a protagonista consiga se sair bem. Essa foi a chave para a resolução do conflito gerado nesse último texto. Além disso, a mensagem sugere algo importante para a vida: a análise ponderada de um problema pode revelar que o necessário para sua resolução pode se encontrar em sua própria natureza; ou seja, em um problema, podemos encontrar respostas para o mesmo problema. Isso é algo fundamental para as relações sociais e, principalmente, para o universo profissional.
Que tal aproveitar e fazer uma pesquisa sobre as fábulas? Elas, além de oferecerem muitos ensinamentos, podem servir de inspiração para muitas outras histórias a serem ainda criadas; a sua pode estar só esperando por isso. Leia. Pesquise. Produza.

Um abraço.


O caminho para o clímax (Em 02/05/2011)

laurosa.wordpress.com

Conforme você está descobrindo nas aulas sobre narração, compor um texto narrativo é muito mais do que contar uma “historinha”, como alguns, com toda ingenuidade, creem. Há muitos elementos sobre os quais deve recair nossa atenção. Uns são mais simples; outros, mais complicados. Desses últimos é quase uma unanimidade a concordância de que o clímax é o mais difícil de ser atingido.
Alguns comparam a arte de se criar um bom clímax num texto com um quebra-cabeças. No entanto, essa comparação talvez seja mais condizente com o trabalho de leitura do leitor, que, passo após passo, vai juntando os elementos, na tentativa de descobrir o mistério que circunda a trama, antes de sua revelação pelo autor; nesse sentido é que a metáfora do quebra-cabeça funciona, e o clímax seria a última peça a ser posta.
Para o autor, entretanto, esse trabalho se compara na verdade com um jogo de xadrez, no qual cada passo pode determinar o sucesso de toda a trama, com um clímax autêntico (o xeque-mate) ou colocar em risco o êxito desse momento, fazendo desmoronar o texto em sua verossimilhança ou em outro aspecto fundamental para esse objetivo.
Existem muitas definições sobre o que é o clímax, mas pouco se tem dito a respeito de como se trabalharem as partes de um texto de maneira que se possa atingir esse ponto da narrativa com propriedade. É muito comum também que exista uma certa confusão a respeito desse elemento; muitos julgam ver um ápice da história onde em realidade não há nenhum, demonstrando uma certa falta de habilidade de leitura para se enxergar quando e se ele verdadeiramente existiu em uma narração. É fato que inclusive muitos profissionais das letras revelam essa dificuldade.
O clímax é o ponto culminante da história; isso é um consenso. É o momento em que tudo o que foi lido antes e que possuía apenas sentido parcial, ou até mesmo não fazia sentido algum, passa a compor, com todo o texto, uma só unidade de sentido. Ele, às vezes em apenas uma linha ou com somente uma palavra, consegue promover a integração de partes que pareciam desprovidas de sentido, se comparadas às outras do mesmo texto. Ele condensa, ao mesmo tempo, o momento em que a ansiedade por respostas a respeito da trama chega ao seu ponto máximo e aquele em que a curiosidade é saciada.
O resultado pode ser a surpresa, se as pistas deixadas no texto conduziram o leitor a crer algo diferente da revelação feita no clímax. Mas também pode ser o de uma certa sensação de prazer, se ele conseguiu encontrar, nas mesmas pistas, o caminho que levava à solução de um mistério, de um segredo, daquilo que se ocultava na história e somente o narrador detinha o poder de saber. É quando o leitor pode relaxar, pensando ou mesmo verbalizando algo como um “Eu sabia!”.
Para que o clímax seja atingido, então, é necessária a habilidade do escritor para aguçar a expectativa de seu leitor, respeitando sua inteligência, convidando-o a participar de uma charada qualquer, que, ao final, se solucionará de forma interessante, de maneira que ele possa dizer com segurança também: “Valeu a pena investir meu tempo nesse texto!”.
Agora, durante todo o tempo, é imprescindível que o escritor seja honesto com seu leitor. Há, entre essas duas dimensões (leitor e escritor), uma espécie de pacto, através do qual o escritor se compromete, digamos assim, a não trair a confiança do leitor, enganando-o, por exemplo, com pistas que não formem um todo ao final da leitura, ou fazendo com o que o narrador pareça desconhecer coisas que pela lógica deveria conhecer. Repetimos: tudo deve fazer sentido após o clímax. Não existem partes gratuitas em uma narração; em outras palavras, nela nada deve sobrar, nada deve faltar. Aquilo que chamamos vulgarmente de “encheção de linguiça” depõe, portanto, negativamente contra o estilo.
Vamos exemplificar o que se disse acima por meio do seguinte tema:

Aquela fotografia pendurada na parede ajudou a revelar um antigo segredo de família.

Elabore um texto narrativo no qual esse trecho seja inserido coerentemente.

Apesar de se tratar de apenas um período, a leitura do tema revela elementos interessantes que devem ser considerados para o sucesso do texto. Quais são eles? Bem, o elemento mais importante, digamos, é a existência de um segredo de família. E não pode ser qualquer segredo, como algo que uma personagem contou para outra no início de uma festa e foi revelado logo no dia seguinte a essa mesma festa, por exemplo. Não. Trata-se de um antigo segredo de família; algo que permaneceu oculto durante muitos anos ou durante gerações. E essa revelação tem um peso também. O segredo deve ser algo digno de ter permanecido guardado durante todo o tempo em que ficou. E, óbvio, diz respeito a uma família qualquer.
Essas primeiras considerações já fornecem problemas mais ou menos complicados de serem resolvidos, de acordo com o rumo que o autor pretender tomar.
Mas a leitura do tema ainda não acabou, pois ele explicita também a forma como esse segredo deve ser revelado: um quadro preso à parede, contendo uma fotografia, é o ponto de partida para a revelação. Assim, pode-se considerar que algo na fotografia revelará o segredo, que algo na moldura ou na parte de trás do quadro contribuirá para a solução ou mesmo que a fotografia induza uma das personagens a se comportar de tal forma, que acabe por descobrir o segredo.

Vejamos o seguinte texto:

paposdebar.blogspot.com
                                                                    

A estranha descoberta do detetive Cristóvão

Em uma noite de tempestade, Cristóvão, detetive particular, estava dentro de seu carro, de tocaia, aguardando a chegada de seu alvo, uma mulher loira, de trinta e cinco anos, casada com um industrial famoso do Rio de Janeiro. O detetive fora contratado por ele para seguir todos os seus passos, pois desconfiava da fidelidade de sua esposa.
Nesses casos, Cristóvão sabia o que deveria fazer, e o fazia muito bem. Era caso de dar um flagrante, fotografando a traição no momento em que se consumasse. Apesar de muito jovem —  tinha vinte e dois anos , ele possuía faro, pois, desde criança, gostava de brincadeiras de agente secreto ou detetive. Os seriados americanos como Magnum e A gata e o rato também o ajudaram bastante a desenvolver o raciocínio lógico. Claro que não teria chegado à perfeição que sua profissão exige se não fosse a leitura de Sherlock Holmes e toda a coleção de Aghata Christie, que lera ainda na adolescência.
Ele bebeu o último gole de café frio que estava no copinho de isopor e checou o relógio. Estava quase na hora. Saltou do carro e buscou abrigo embaixo de uma marquise.
Não demorou muito e um táxi vermelho parou em frente à portaria do edifício sob cuja marquise Cristóvão se abrigara. De dentro dele, a loira saltou, atirando uma nota de cem reais para o taxista, que tentou avisar sobre o troco, mas em vão. Ela cruzou voando a calçada e entrou no prédio, dirigindo-se para o elevador.
Cristóvão, sossegadamente, adentrou logo em seguida. Acendeu um cigarro, deu uma tragada. Encaminhou-se até o porteiro e lhe meteu pelo bolso uma nota amarrotada de vinte reais. Já estava tudo combinado. Agora era só questão de tempo. Quinze ou vinte minutos seriam suficientes.
Passado mais ou menos o tempo de dois cigarros, Cristóvão começou a agir.
Com a alça de sua câmera em volta do pescoço, tomou o elevador rumo ao décimo segundo andar. Em frente ao apartamento em que a loira estaria, estacou. Achou estranho; a porta se encontrava entreaberta. Ele já estava com um de seus dispositivos para destrancar portas, mas nem foi preciso. Avançou com passos incertos.
Entrou em uma sala ampla, bem-decorada, de fraca iluminação. Estava tudo silencioso; a chuva passou a cair mais intensamente. De repente, ele ouviu vozes murmurando no fim de um corredor. “Então é lá que estão os dois pombinhos”, ele pensou.
Pé ante pé, ele foi se aproximando da porta do quarto; esta também estava apenas encostada. Os murmúrios foram ficando mais consistentes. Ele já conseguia distinguir nitidamente algumas palavras. Ouviu um “meu amor!” mais adocicado. “É agora!”, teve certeza em sua mente.
Acendeu o flash, empurrou a porta, mirou a câmera, e o que ele viu o deixou desconcertado.
Sentados na beirada da cama, elegantemente vestidos, estavam o industrial que o contratara e a mulher loira.
Entre e sente, meu filho — convidou a mulher loira.
Como assim "meu filho"? — espantou-se Cristóvão. — Pelo que eu saiba...
Você não sabe de muita coisa — cortou-lhe a fala o industrial. — Mas hoje você vai saber de tudo.
Sim, filho. Olhe para aquela fotografia na parede, e você irá entender tudo — orientou a mulher.
Cristóvão se aproximou de um quadro com uma moldura dourada e antiga no qual havia três pessoas: um jovem, de pé, atrás de uma linda moça recém-saída da adolescência, sentada a uma cadeira, com um bebê no colo. Tudo na fotografia sugeria um ambiente simples, assim como as roupas que os dois jovens estavam usando.
Imediatamente Cristóvão reconheceu aquele casal, o industrial e a mulher loira, e viu que o bebê da foto era ele.
Mas como? Então eu não sou órfão?
Não, meu filho — disse o industrial.
Nós éramos jovens e muito pobres na época em que você veio ao mundo. Por isso, resolvemos dar você para nossa empregada, que não podia ter filhos. Infelizmente não soubemos mais dela. Muitos anos se passaram e enriquecemos. Decidimos que já era hora de procurarmos por você. Por isso tentamos encontrar um detetive experiente que pudesse procurar por nosso filho.
Pois é, quando entrei no seu escritório, nem acreditei. Vi imediatamente que era você aquele bebê lindo de seis meses que abandonamos e por quem procurávamos, e decidimos fazer uma pegadinha com você — completou o industrial.
Ah, papai! Ah, mamãe! Que bom que encontrei meus verdadeiros pais e que vocês têm todo esse senso de humor.
Depois de muito chorarem abraçados e de joelhos no chão, os três caíram num acesso de riso. Nesse momento a tempestade que desabava sobre a cidade se dissipou.

***
Repare que, apesar de bem-conduzida a trama até certo ponto, seu desenrolar simplesmente não faz sentido.
Não se espera de um casal de pessoas supostamente maduras, uma mulher de trinta e cinco anos e um industrial, que, após o abandono de um filho, tentem recuperar o contato perdido vinte e dois anos depois, aplicando-lhe uma “pegadinha”. Quando o pai de Cristóvão o viu pela última vez, o moço era um bebê de seis meses; de que maneira ele o reconheceria, imediatamente, após tanto tempo? Que lugar era aquele em que os três se encontravam? Se os pais do detetive eram tão pobres como alegaram, como poderiam ter empregada? Alguém, após ser abandonado friamente pelos pais, reagiria da maneira como Cristóvão reagiu no texto? Tudo terminaria em gargalhadas? E o mais comprometedor de tudo: onde está o segredo de família? Não há sequer segredo nessa história. O resultado é simplesmente inverossímil.

Vamos ver agora este outro exemplo baseado no mesmo tema.
                                                       

O retrato
Marcelo Ferreira de Menezes

Sou o último de uma família de três filhos. Sou temporão, como se costuma dizer nesses casos. Quando minha mãe me deu à luz, já passava dos quarenta, e meus dois irmãos eram adolescentes. Até onde minha memória alcança, não me lembro da companhia deles. Cresci sozinho pelos quintais de minha casa. Não conheci meus avós, mas penso agora que isso talvez não tenha sido mesmo necessário, já que meu pai, com seus cabelos e barba brancos, com seu olhar duro e seu jeito cansado da vida, deveria se parecer mesmo com um avô, desses de histórias infantis.
Mas ele era austero; não tinha nada dessa docilidade corriqueira dos avôs. Valorizava a moral, os bons costumes, conforme ele sempre dizia em seus longos sermões às mesas de domingo, quando, muitas vezes, alterado pela emoção, dava contundentes murros sobre a madeira, fazendo chacoalhar copos, talheres e meu pequeno corpo. Esses murros sucediam uma série de sentenças que sempre começavam por “Um homem deve ser...” e Pam! Um murro. “Um homem deve ser...” e Pam! Outro murro. A esses almoços concorriam metodicamente meu irmão e sua esposa, mas nunca minha irmã, que somente aparecia uma vez por ano, justamente nas noites de Natal. Então, minha mãe a recebia no portão. Abraçavam-se, choravam bastante, trocavam beijos cheios de ternura. Meu pai se trancava em sua sala de leituras, onde jamais me fora permitido entrar. Eu, proibido de ir lá fora, assistia a tudo da janela de meu quarto. Como parecia ser bonita minha irmã. Passado algum tempo, despediam-se; ela partia, de cabeça baixa; minha mãe entrava lacrimosa.
Demorei anos para entender o porquê da surra que levei certo dia. Como tinha habilidade para consertar qualquer coisa, jurei a uma colega de escola que consertaria sua boneca. Meu pai, revistando minha mochila no meu quarto, encontrou o tal brinquedo. Um olho roxo, hematomas por todo o corpo, três costelas quebradas e uma perfuração no pulmão esquerdo foi o saldo da minha tentativa de impressionar o sexo oposto.
Sobre o piano de cauda de minha mãe, dezenas de porta-retratos com fotos minhas, de meus pais, de meu irmão com sua mulher, de minha mãe ou de meu pai sozinhos, de todos de uma vez só; nenhuma de minha irmã. Mistério que martelava meu jovem espírito e que produzia flashes de imagens mentais confusas, na tentativa de uma resposta.
Hoje, que o véu do segredo não mais obstrui minha visão, é difícil não pensar que era tudo óbvio demais. Contava eu dezessete anos e voltava de uma carraspana, sozinho, para casa; meus pais estavam em viagem. Não sabia como nem onde, mas eu perdera as chaves da porta. Forcei todas as janelas; só a da sala de leitura de meu pai abriu. Pulei para dentro e, podendo ir para meu quarto, não o fiz. Um quadro preso à parede, com uma foto de todos nós, sem minha irmã, chamou-me a atenção e, tomado por uma curiosidade esquisita, resolvi mexer nas gavetas de um dos armários. E foi nele que encontrei um velho álbum de família. Sem saber o que procurava ao certo ali, acabei descobrindo por acaso a resposta para aquele antigo mistério.
Olhei quase uma centena de fotografias. Quanto mais eu via as fotos, mais percebia que algo não estava fazendo sentido. Eram fotos de nossa família, correto. Eu olhava, olhava, e não compreendia o que poderia ser. Até que, virando uma página, uma foto surgiu diante de meus olhos e lançou um clarão tão intenso em minha mente que eu caí sentado num sofá. Nela estavam meu pai e minha mãe, os dois de pé, atrás de meus dois irmãos, sentados cada um em uma cadeira. No colo de um deles, eu, ainda bebê. Imediatamente reconheci aquela moça que eu sempre vira no portão, chorando com mamãe, nas noites de Natal. Sim, era minha irmã; tive plena certeza disso. Mas, ali, naquela foto, naquele momento registrado para sempre pela lente da câmera, não era ainda aquela bela mulher, que sempre me intrigara desde criança; não, era um menino sorridente, de feições delicadas, de mais ou menos uns quinze anos, quem me amparava gentilmente nos braços.

***

É muito importante que o redator saiba, aproveitando-se do que o tema fornece, no que consistirá o clímax de sua história, antes mesmo de colocar a caneta no papel. Todas as situações pelas quais a personagem irá passar têm de ser ponderadas e comparadas com as situações possíveis de serem encontradas na vida (caso se trate de um texto com características realistas).
A escolha do foco narrativo determina profundamente as possibilidades da narração. Sabendo disso, optamos por um narrador em primeira pessoa, para que o segredo guardado pela família durante tanto tempo fosse oculto somente para ele, o que dará ao texto um tom de confissão.
Esse recurso deu a oportunidade de criar um narrador que se propõe a contar para o leitor como e quando desvendou um mistério sobre sua família. Assim, o narrador, referindo-se às cenas vividas no passado, conta apenas o que o limite de sua percepção alcançava e os sinais que o perturbavam naqueles momentos aparentemente sem nexo, sem antecipar detalhes que revelem, antes do tempo, a solução: um pai austero, por demais preocupado com um padrão de masculinidade; uma irmã misteriosa, que somente surgia nas noites de Natal e da qual ele jamais pôde se aproximar; uma surra, que levou sem entender o porquê, e fotografias de todos os membros da família, menos da irmã misteriosa. São esses os elementos que alimentam a expectativa do leitor por respostas. Que razões existiriam por trás desses sinais?
A partir daí surge uma série de exigências técnicas necessárias para que o texto possa ser o mais fiel possível à realidade. E elas surgem primeiro como problemas que devem ser devidamente e cuidadosamente respondidos pelo redator:
1) Como fazer para que alguém não conheça bem a história de seus irmãos?
Resposta: a personagem deveria ser temporão.
2) Como fazer para que a personagem ficasse distante dessa irmã misteriosa durante tanto tempo e não tivesse acesso a ela, nem acidentalmente?
Resposta: obviamente, seu irmão fora expulso de casa ainda muito cedo, quando o narrador ainda não tinha consciência suficiente do mundo a sua volta; a noite de Natal seria o único dia concedido pelo pai para uma visita rápida; o narrador tinha ordens expressas de não sair de seu quarto.
3) De que maneira o quadro auxiliaria a personagem na resolução do mistério?
Resposta: o mistério não poderia estar no quadro, pois seria impossível se viver tanto tempo em uma mesma casa sem atentar para os elementos de uma fotografia presa à parede; assim, o quadro apenas deveria despertar ou aguçar o interesse da personagem para que esta agisse de maneira fora do normal.
4) O que teria impedido a personagem de entrar na sala de leitura de seu pai antes?
Resposta: com um pai desses, quem arriscaria a descumprir uma ordem?
5) Por que ele entraria em um local que lhe era proibido sem um motivo bastante plausível?
Resposta: colocar os pais do narrador em uma viagem para deixar a casa vazia; aproveitando-se disso, o narrador, jovem, sai e bebe demais, perdendo as chaves, o que o obrigaria a tentar entrar por uma das janelas; alcoolizado, o narrador se libera de suas tensões normais e passa a investigar um ambiente que, na condição de sóbrio, não teria coragem de vasculhar.
6) Como deixar pistas para o leitor para que, após o clímax, perceba a fidelidade do escritor com relação ao pacto de confiança que sempre deve ser estabelecido desde o início da narrativa?
Resposta: não enganar o leitor com pistas falsas, que não comporão um todo com o restante do texto, ou com partes narrativas que não tenham estrita relação com o clímax (não “encher linguiça”).
7) O que fazer também para demonstrar que a preocupação exacerbada do pai da personagem não possuía qualquer fundamento, uma vez que a orientação sexual do narrador já estava definida desde a infância?
Resposta: o trecho do conserto da boneca indica que o narrador quis consertar o brinquedo para impressionar sua amiga de escola.

Cada uma dessas e outras perguntas foram sendo respondidas metodicamente e, ao final, se converteram em sequências narrativas ou descritivas dentro do texto, de maneira a lhe garantir a verossimilhança e o sucesso do clímax.
É claro que um tema pode ter tantas soluções quantas forem as cabeças criativas a imaginá-las. Um outro desenvolvimento para esse tema implicaria uma série de diferentes perguntas; logo, problemas diferentes teriam de ser considerados.
O importante é ter em mente que escrever um texto narrativo é um desafio de lógica, quase um problema matemático. Somente o treino constante e muita leitura serão capazes de levar você a produzir, com maturidade e eficiência, esse tipo de texto. Por isso, não fique parado. Vamos treinar!

P.S. : Todos os textos apresentados neste post são de autoria do professor Marcelo Ferreira de Menezes

"Sleepers" - Postado em 24/05/11

thedustofdan.blogspot.com


Sonhar pode custar caro
Prof. Marcelo Ferreira de Menezes

Sonhar não custa nada, e o meu sonho é tão real... Assim começava um antigo samba enredo de 1992 de uma famosa escola de samba do Rio de Janeiro, a Mocidade Independente de Padre Miguel. Sonhar, no sentido de imaginar, projetar algo de bom para o futuro, idealizar uma situação qualquer, realmente não custa nada e pode ser um ótimo exercício para a mente e para o espírito. Já o sonho de todos os dias, aquele que surge quando estamos dormindo, esse é que não custa nada mesmo, nem esforço mental! Mas, quando estamos falando da escritura de textos narrativos e da construção de um clímax para eles, sonhos ou devaneios, como recurso de resolução da trama, hum..., podem não ser uma boa ideia.
Você já deve ter lido um conto ou um livro, deve ter visto um filme ou um desenho animado cujo clímax da trama se dá quando o protagonista, vendo-se em meio a conflitos que não se resolvem nunca ou em meio a uma situação insolúvel de grande perigo, acorda, revelando ao leitor ou espectador que tudo não passou de um terrível sonho. Já houve época em que esse recurso, tendo sido aplicado numa obra, chegou a fazer algum tipo de efeito surpresa. Mas esse tempo já vai longe.
Com o passar dos anos, ele foi utilizado de tantas e variadas maneiras, que se desgastou, e hoje talvez apenas funcione com as crianças e com os adolescentes, mesmo assim somente com aqueles que ainda não o conhecem. Por isso, chamamos esse recurso de clichê, ou seja, algo que, pelo uso em demasia, pelo emprego recorrente, já não produz o efeito o qual se propõe produzir. Os iniciantes nesse tipo de texto costumam dar finais assim a suas redações; mas é necessário que abandonem essa muleta à medida que vão recebendo mais e melhores informações sobre a narração.
O problema com a aplicação desse clichê surge quando alguém, tendo se utilizado dele em uma narração de concurso, por exemplo, crê que criou algo absolutamente original, criativo. Ledo engano. “Mas o cinema faz isso e as novelas de TV também!”, tenta argumentar o malfadado redator. E até certo ponto, ele não deixa de ter razão, mas...
Sempre insistimos aqui no blog sobre a importância de que o redator compreenda que, numa situação de avaliação, ele não estará escrevendo para uma criança ou para telespectadores, mas para um adulto hábil em leitura. Ou seja, sua produção estará inserida em um contexto todo próprio, diferente daquele de produção de uma telenovela, de um filme, de um livro ou de uma revista em quadrinhos, digamos. As novelas, só para ficar em um exemplo mais próximo de nós, brasileiros, literalmente cozinham o telespectador com tramas intrincadas, cuja solução é tão difícil, que seus autores apelam para finais inverossímeis; aquilo que o público em geral classifica como final mal contado. Mas aí já é tarde demais para reclamações, pois o último capítulo já foi ao ar, e a emissora já faturou o que tinha que faturar. Por isso os autores de telenovelas não sentem nenhum impedimento em fazerem o que fazem nos últimos capítulos: o compromisso deles é com o faturamento.
Resolver tramas narrativas acordando protagonistas de um sonho é uma solução simplista que pode revelar para o avaliador algo negativo sobre o redator. Na verdade o uso desse ardil expõe a total falta de criatividade do escritor e sua inabilidade de apresentar uma solução para os problemas que ele mesmo foi gerando ao longo de sua narrativa. Trocando em miúdos: isso é algo que compromete o estilo do texto. E você, que é aluno de nosso curso, sabe o quanto o comprometimento dessa dimensão pode custar caro em um treinamento ou prova. Dependendo do tema, ele pode significar até grau zero de estilo.
Podemos dizer que a artimanha do tudo não passou de um sonho é, conforme nos disse o escritor paraibano Bráulio Tavares, uma mutação, “um irmão de sangue” de um recurso surgido na Grécia antiga, mas utilizado até os dias de hoje, chamado deus ex machina (leia-se máquina). Conforme nos esclarece esse mesmo escritor:

Em algumas peças de teatro da Antiguidade, principalmente entre os gregos, acontecia às vezes de o texto se encaminhar para o final sem poder dar uma resolução satisfatória aos problemas dos protagonistas. Os deuses do Olimpo ficavam impacientes com os desmandos praticados pelos seres humanos, e se viam obrigados a interferir nas suas ações, para evitar que maiores injustiças fossem cometidas. Na última cena, então, descia do alto um deus ou semideus que interferia na história de diferentes maneiras: salvando a vida do protagonista, condenando os vilões, e assim por diante. Esses personagens eram descidos ao palco por um sistema de andaimes ou plataformas que pareciam descer do céu, sendo erguidas e baixadas através de roldanas, daí o termo original, que significa aproximadamente "deuses surgidos através de meios artificiais”.
(A solução que caiu do céu, Revista Língua Portuguesa, 2011).

Muitos foram os autores que se valeram e continuam se valendo desse tipo de armadilha para o leitor ou para o espectador. Recentemente, milhões de pessoas pelo mundo ficaram decepcionadas após assistirem ao final da série de TV americana Lost, da qual foram devotos ao longo de seis anos. A trama intrincada apresentou uma série de problemas tão difíceis de serem resolvidos, que seus autores apelaram para um final em que simplesmente confessam aos fãs que os personagens estão mortos desde o primeiro episódio, devido à queda do voo 815 da Oceanic Airlines, e “vivendo” numa espécie de limbo. Isso foi um verdadeiro banho de água fria em quem acompanhou todos os episódios na esperança de explicações plausíveis para tantas situações fantásticas e ilógicas que se foram acumulando.
A mesma sensação tem o leitor hábil quando percebe que perdeu seu tempo lendo uma trama que se resolve de maneira simplista e sem criatividade, em que faltou o alinhave com classe e inteligência dos problemas propostos no enredo. O leitor se sente traído; sente que caiu numa espécie de golpe, que recebeu um cheque sem fundos. Isso porque o redator pode colocar o que quiser no papel, as situações mais fantásticas, as aventuras mais emocionantes, os fatos mais absurdos, pois sabe muito bem, desde o início, que não terá trabalho para resolver tudo o que pôs no papel com sua caneta. É um gesto de deslealdade do escritor para com seu leitor.
Portanto, lembre-se: tente solucionar a trama com uma revelação, uma surpresa autêntica, utilizando-se de todos os elementos que forem sendo inseridos na narração. O ideal é saber aonde se quer chegar primeiro, conhecer de antemão qual será o clímax. Em seguida, vai-se construindo cada etapa, de maneira que essas etapas se harmonizem e contribuam para a lógica que levará a um final inteligente e, portanto, criativo.
Da próxima vez que estiver produzindo uma narração para ser avaliada em um processo de seleção, não durma no ponto, como se diz por aí. Nesse caso, sonhar, dependendo do tema dado, pode custar caro, e é você que pode acordar no meio de um pesadelo.


Sobre o assunto clichês, veja também
 http://www.sobrecarga.com.br/node/view/972