O retrato - 24/04/17

Baseado no seguinte tema:

 Aquela fotografia pendurada na parede ajudou a revelar um antigo segredo de família.

 Elabore um texto narrativo no qual esse trecho seja inserido coerentemente. 

                                                       

O retrato
Marcelo Ferreira de Menezes

Sou o último de uma família de três filhos. Sou temporão, como se costuma dizer nesses casos. Quando minha mãe me deu à luz, já passava dos quarenta, e meus dois irmãos eram adolescentes. Até onde minha memória alcança, não me lembro da companhia deles. Cresci sozinho pelos quintais de minha casa. Não conheci meus avós, mas penso agora que isso talvez não tenha sido mesmo necessário, já que meu pai, com seus cabelos e barba brancos, com seu olhar duro e seu jeito cansado da vida, deveria se parecer mesmo com um avô, desses de histórias infantis.
Mas ele era austero; não tinha nada dessa docilidade corriqueira dos avôs. Valorizava a moral, os bons costumes, conforme ele sempre dizia em seus longos sermões às mesas de domingo, quando, muitas vezes, alterado pela emoção, dava contundentes murros sobre a madeira, fazendo chacoalhar copos, talheres e meu pequeno corpo. Esses murros sucediam uma série de sentenças que sempre começavam por “Um homem deve ser...” e Pam! Um murro. “Um homem deve ser...” e Pam! Outro murro. A esses almoços concorriam metodicamente meu irmão e sua esposa, mas nunca minha irmã, que somente aparecia uma vez por ano, justamente nas noites de Natal. Então, minha mãe a recebia no portão. Abraçavam-se, choravam bastante, trocavam beijos cheios de ternura. Meu pai se trancava em sua sala de leituras, onde jamais me fora permitido entrar. Eu, proibido de ir lá fora, assistia a tudo da janela de meu quarto. Como parecia ser bonita minha irmã. Passado algum tempo, despediam-se; ela partia, de cabeça baixa; minha mãe entrava lacrimosa.
Demorei anos para entender o porquê da surra que levei certo dia. Como tinha habilidade para consertar qualquer coisa, jurei a uma colega de escola que consertaria sua boneca. Meu pai, revistando minha mochila no meu quarto, encontrou o tal brinquedo. Um olho roxo, hematomas por todo o corpo, três costelas quebradas e uma perfuração no pulmão esquerdo foi o saldo da minha tentativa de impressionar o sexo oposto.
Sobre o piano de cauda de minha mãe, dezenas de porta-retratos com fotos minhas, de meus pais, de meu irmão com sua mulher, de minha mãe ou de meu pai sozinhos, de todos de uma vez só; nenhuma de minha irmã. Mistério que martelava meu jovem espírito e que produzia flashes de imagens mentais confusas, na tentativa de uma resposta.
Hoje, que o véu do segredo não mais obstrui minha visão, é difícil não pensar que era tudo óbvio demais. Contava eu dezessete anos e voltava de uma carraspana, sozinho, para casa; meus pais estavam em viagem. Não sabia como nem onde, mas eu perdera as chaves da porta. Forcei todas as janelas; só a da sala de leitura de meu pai abriu. Pulei para dentro e, podendo ir para meu quarto, não o fiz. Um quadro preso à parede, com uma foto de todos nós, sem minha irmã, chamou-me a atenção e, tomado por uma curiosidade esquisita, resolvi mexer nas gavetas de um dos armários. E foi nele que encontrei um velho álbum de família. Sem saber o que procurava ao certo ali, acabei descobrindo por acaso a resposta para aquele antigo mistério.
Olhei quase uma centena de fotografias. Quanto mais eu via as fotos, mais percebia que algo não estava fazendo sentido. Eram fotos de nossa família, correto. Eu olhava, olhava, e não compreendia o que poderia ser. Até que, virando uma página, uma foto surgiu diante de meus olhos e lançou um clarão tão intenso em minha mente que eu caí sentado num sofá. Nela estavam meu pai e minha mãe, os dois de pé, atrás de meus dois irmãos, sentados cada um em uma cadeira. No colo de um deles, eu, ainda bebê. Imediatamente reconheci aquela moça que eu sempre vira no portão, chorando com mamãe, nas noites de Natal. Sim, era minha irmã; tive plena certeza disso. Mas, ali, naquela foto, naquele momento registrado para sempre pela lente da câmera, não era ainda aquela bela mulher, que sempre me intrigara desde criança; não, era um menino sorridente, de feições delicadas, de mais ou menos uns quinze anos, quem me amparava gentilmente nos braços.