Os detalhes fazem toda a diferença (22/08/11)

 
Vanessa Nix
            

           Conforme já comentamos na análise da postagem anterior, a descrição não é uma enumeração exaustiva de detalhes. Pressupõe observação seletiva para captar as características mais expressivas do objeto observado, ou seja, aquelas que mais impressionaram a percepção sensorial do observador, responsáveis pela construção da imagem retratada.
          O exercício da descrição é, pois, um exercício de verbalização das impressões. Aquele que se propõe a descrever uma pessoa, um ambiente ou uma paisagem se vê, assim, diante da missão de transformar em PALAVRAS as suas sensações corporais a fim de formar um quadro ou uma cena. Mas, diferentemente destes, que possibilitam a quem os vê observar todo o objeto praticamente de uma só vez, o texto vai apresentando ao seu leitor o ser retratado gradativamente, linha a linha, de modo que o leitor vai construindo a imagem aos poucos, por partes. E isso, obviamente, exigirá um trabalho mais cuidadoso com a linguagem.
           Você não sabe como? Calma! É por isso que estamos aqui, para ajudá-lo nessa tarefa. Você já deve ter ouvido falar em frases nominais. E para que elas servem mesmo? Vamos recordar juntos.
Repare nestas frases: Adriano é encantador. Maria Júlia está tranquila. Fernando continua atencioso. Mariana parece contente. O que elas têm em comum? Isso mesmo! Todas possuem verbo de ligação, que são: é, está, continua e parece. Mas que efeito eles provocam? Como o próprio nome nos revela, esses verbos servem para ligar o predicativo, ou seja, a qualidade do sujeito ao sujeito e realçam, portanto, as qualidades do ser. Desse modo, quando dizemos Adriano é encantador. Maria Júlia está tranquila. Fernando continua atencioso. Mariana parece contente, esses enunciados estão traduzindo uma visão estática do mundo; é como se fosse uma fotografia. (MESQUITA, 1994, p. 381). Estou vendo cada um desses seres parados, possuidores de uma qualidade: Adriano encantador. Maria Júlia tranquila. Fernando atencioso. Mariana contente.
Assim, quando se deseja ressaltar uma qualidade ou um estado de um ser a fim de caracterizá-lo, um dos recursos de que a língua dispõe é a chamada frase nominal. Por essa razão, elas costumam aparecer em textos descritivos. Essas frases podem também assumir outra estrutura; muitas vezes o verbo não vem explícito, podendo ser facilmente deduzido pelo contexto, como se pode observar no exemplo a seguir:
O mendigo apresentava todas as marcas que o tempo e o sofrimento lhe impuseram: olhos profundos como a noite, cabelos negros oleosos, dentes amarelados pelo tabaco, pele castigada pelo sol, mãos e pés encardidos pela fuligem. Tinha como amigos apenas seus três cães.

Assim dispostas no período, as frases nominais sem verbo desempenham uma função sintática específica e constituem o chamado aposto enumerativo, utilizado para enumerar as "marcas que o tempo e o sofrimento lhe[ao mendigo] impuseram" e colaboram para formar um retrato do mendigo. Veja o mesmo trecho reescrito com verbos: (seus) olhos (eram) profundos como a noite, (seus) cabelos (eram) negros oleosos, (seus) dentes (eram) amarelados pelo tabaco, (sua) pele (era) castigada pelo sol, (suas) mãos e pés (eram) encardidos pela fuligem. Tinha como amigos apenas seus três cães.
Mas, atenção! Dependendo de como essas frases aparecem no período e de onde se localizam no texto, elas podem, na verdade, prejudicar a fluência das ideias e, com isso, comprometer o estilo. Observe as mesmas frases nominais transcritas no texto abaixo:
Caminhando apressadamente como fazia todos os dias no horário do almoço, passei, como de costume, por aquele beco estreito que me servia de atalho. Não esperava, no entanto, me deparar com aquela figura humana que mais parecia o retrato da tristeza e melancolia: um mendigo.
Com olhos profundos como a noite, cabelos negros oleosos, dentes amarelados pelo tabaco, pele castigada pelo sol, mãos e pés encardidos pela fuligem. O chinelo de couro já sem tiras como um velho clamando sua aposentadoria. O chapéu cansado de esperar por esmolas. Observava a todos, sem ser observado por ninguém.
As frases nominais agora se situam no início do segundo parágrafo do texto, que, conforme o esquema básico (também já comentado neste blog), corresponde ao primeiro parágrafo do desenvolvimento, onde se encontram as características físicas da pessoa. Introduzidas pela preposição com, passam a funcionar como adjunto adverbial e, por esse motivo, requerem, no mesmo período, um sujeito e um verbo que o acompanhem. Qual a função de um adjunto adverbial sozinho num período? Gramaticalmente falando, um adjunto adverbial isolado não compõe uma frase e, portanto, não possui sentido completo.
Mas, peraí! Não está claro que se trata das características do mendigo, mencionado no final do parágrafo anterior, o qual corresponde à introdução do texto? Qual o problema, então, de se romper com as regras gramaticais e se criar um estilo original?
De fato, são inúmeros os recursos estilísticos que rompem com as normas gramaticais e que, dependendo do contexto, se consagram como verdadeiras criações literárias. Mas, para que surtam o efeito desejado, a intenção artística tem de estar muito bem clara a fim de que não seja mal interpretada. Acontece que, num texto de aluno, do qual não se espera, por sua condição de "aprendiz", construções muito inusitadas porque estas pressupõem total domínio gramatical, produções desse tipo não são previstas e, por essa razão, não devem ser aceitas.
O aconselhável nesses casos é seguir o que dita a norma padrão e obedecer às regras de constituição da frase. Isso sem contar o fato de que é preciso se compor uma imagem do objeto retratado. Se a enumeração de detalhes não tiver uma função sintática clara na frase, dificilmente ela constituirá um retrato. Por isso, prefira as frases mais curtas, se possível com verbo explícito, e tente organizar as ideias em pequenas tomadas, de maneira que, ao final, elas formem um todo harmonioso dentro de um quadro maior. Que tal praticar agora?
Aproveitando aquela enumeração, divida-a em períodos de estrutura sintática completa, como, por exemplo, a que se segue: Com olhos profundos como a noite, parece não fixar o olhar em nenhum ponto específico. Seus cabelos negros oleosos confundem-se com sua barba densa, a qual, por vezes, revela dentes amarelados pelo tabaco. Na pele castigada pelo sol, notam-se cicatrizes de uma vida difícil, sustentada por mãos e pés encardidos pela fuligem.
Você concorda que, da maneira como foi reescrito, esse trecho parece mais significativo? E sabe por quê? Porque agora os detalhes, inseridos em períodos fluentes (formados por orações com sujeito e predicado) e bem-articulados (graças a pronomes e preposições), assumem contornos distintos, que compõem um quadro maior, no caso aspectos físicos predominantemente da cabeça.
Assim como um pintor, para compor o seu quadro, mistura cores e utiliza pincéis e utensílios os mais variados a fim de produzir os efeitos desejados, o escritor também deve dispor de todos os recursos da língua para produzir um texto rico e expressivo, capaz de traduzir em palavras o que o corpo capta por meio das sensações.
Pense nisso!