O feiticeiro - 14/04/16


Tema

Crie uma narrativa em que duas personagens de países, costumes e classes sociais diferentes se envolvam e esse envolvimento deixe uma lição de vida. 




O feiticeiro
Marcelo F. de Menezes

Ao me formar sociólogo, eu, muito jovem ainda, percebi que me faltava experiência de campo. Um professor, amigo e mentor me aconselhou insistentemente a tomar um banho de imersão em uma cultura totalmente diversa daquela a que eu estava acostumado, a fim de ampliar meus horizontes e me livrar de preconceitos, muitos dos quais eu sequer conseguiria suspeitar à época. Contrariando meus pais, que chegaram a cortar minha gorda mesada, indignados que estavam com minha decisão, abandonei o conforto de uma vida de classe média alta e fui viver na Namíbia, país que ainda conserva algumas tradições exóticas.
Junto à língua oficial, o inglês, dezenas de dialetos são utilizados pelos habitantes, o que torna a compreensão uma tarefa quase impossível. Contudo, com auxílio de um guia e intérprete, consegui moradia numa espécie de pensão rústica para moços e, no mesmo bairro, emprego num insalubre matadouro de porcos. Eu era o responsável pelo abate de dezenas de suínos diariamente, algo inteiramente novo e perturbador para mim, que jamais matara sequer uma mosca, por assim dizer. Somente um coração muito duro não se comove ante a cena de um animal lutando contra seu fim. Era um trabalho penoso, mas eu tinha de sobreviver... Meu amor pela carreira e pela pesquisa me fazia superar qualquer situação difícil.
Enquanto me ocupava com meu doloroso trabalho no terreirão do abatedouro, do terceiro andar de um prédio decadente, que servia de abrigo a famílias pobres, um senhor negro, bastante idoso, ficava a me observar com dureza no olhar. Enfezado, ele gritava palavras em seu confuso dialeto e parecia me amaldiçoar a cada porco degolado. Suas mãos traçavam desenhos misteriosos no ar e, enquanto cantava uma melodia triste e bem ritmada, de sua janela, ele apontava um chocalho de cabaça para mim, soltando densas baforadas de seu charuto.
Um dia, ao chegar do trabalho, a dona da pensão levou a meu quarto um vistoso colar, feito de sementes nativas. Disse que era um presente do ancião enfurecido do terceiro andar. Eu, muito católico que era, disse que não iria usar aquilo; de certo era um fetiche para me fazer mal. Mas, um pouco contrariado, acabei por ficar com o tal colar, saindo imediatamente para ter com meu guia, no intuito de me certificar sobre aquilo. Ele sugeriu que fôssemos juntos ao matadouro no dia seguinte a fim de presenciar o que realmente estava acontecendo.
Assim o fiz. E, mais uma vez, a cena se repetiu. Ao sangrar o primeiro porco, o feiticeiro começou a praguejar do alto de sua janela, gesticulando muito e cantando a mesma melodia. Após ouvir tudo, o guia me explicou o significado das misteriosas palavras.
Não é uma maldição não! disse-me rindo. É uma bênção! E é para sua proteção, viu? Ele está afastando de você os espíritos vingativos dos porcos; eles sim estão aborrecidos com você, pois sua piedade está lhes dificultando a morte!
Aceitei finalmente o presente. Diante do alerta de meu protetor anônimo, mudei de emprego e continuei minhas pesquisas. Depois de voltar para o Brasil e de relatar minhas peripécias por África e, em especial, essa aventura , meu professor e amigo me esclareceu algo mais óbvio ainda:
Viu? Até para entender nossos próprios costumes é vital o contato com o outro, com outra cultura. De onde você acha que vem a expressão espírito de porco? Os negros africanos, durante o período da escravidão, a trouxeram para cá!
Hoje, todas as vezes em que inicio meu concorrido curso de sociologia, exibo, orgulhoso, o colar, que jamais saiu do meu pescoço, contando a meus alunos como ele entrou na minha vida.