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Quando se ganha em se perder
Prof. Marcelo Ferreira de Menezes
Tenho muito medo de voar. Praticamente passei a vida toda
viajando de ônibus. Jamais havia cogitado a possibilidade de entrar em
um avião; até aquele dia.
Eu já estava trabalhando há alguns anos numa pequena firma de
contabilidade. Apesar de ainda não ser o emprego dos sonhos, consegui
juntar umas economias. Com isso, pude, além de mobiliar confortavelmente
minha casa alugada, comprar um carro do ano. Devia praticamente tudo à
confiança que meu chefe sempre depositara em mim. Por isso, não pude
negar-lhe um pedido: viajar a Miami para resolver um assunto seu
pendente; questões de herança.
Mesmo com muito medo, tirei meu passaporte, comprei as passagens e
preparei a bagagem. No dia da viagem, eu estava tão nervoso, que me
atrapalhei em quase todas as tarefas simples do dia: deixei o leite do
café-da-manhã derramar, esqueci o fogão com o fogo aceso, abri o
chuveiro e me esqueci de entrar para tomar banho, além de outras
mancadas. Mesmo com todas essas trapalhadas, não me esqueci de deixar
Boris, meu gato siamês, no hotelzinho de animais.
Ao retornar para casa, esquentei, pela última vez, o motor do carro, só
por precaução, já que eu iria ficar fora durante quinze dias, coloquei
as malas no portão e fiquei esperando o táxi, que não demorou a chegar.
No aeroporto, entrei na fila do check-in e fiquei esperando minha vez de ser atendido. Quando finalmente ela chegou, a atendente solicitou:
― Seu passaporte, por favor.
― Pois não ― disse, enquanto enfiava a mão no bolso do terno.
Devo ter ficado branco ou verde, pois, na mesma hora, a atendente quis
saber se eu estava passando bem. O passaporte simplesmente não estava no
bolso do paletó. Revirei a mala, as sacolas; nada. “Era só o que me
faltava!”, pensei. “Vou perder o diabo do voo!”. E perdi mesmo.
Liguei para o meu chefe e expliquei a situação. Ele compreendeu, mas
não deixou de me dar um puxão de orelhas. Eu troquei a passagem para o
dia seguinte e voltei para casa.
O táxi parou em frente ao meu portão, e o taxista me ajudou a
desembarcar as malas. Dei-lhe uma gorjeta pelo serviço, e ele se foi.
Mais uma vez, levei a mão ao bolso do terno procurando o molho de
chaves para entrar em casa. Gelei novamente: não estava lá. Dessa vez eu
gritei mesmo:
― Mas que diabos! Deve ter um infeliz de um duende me perseguindo!
Fucei as malas novamente, e nada. Já estava indo chamar um chaveiro,
quando olhei para a fechadura do portão. Só aí pude perceber algo
prateado balançando ao vento diante do meu nariz. O molho de chaves
estava simplesmente engatado à fechadura do portão. Ao fechá-lo, no
momento de minha saída pela manhã, esquecera-me de o tirar dali. Tudo
fruto da perturbação na qual me encontrava, da ansiedade e do medo de
voar.
Pensando no que poderia ter acontecido a partir daquele lamentável
descuido ― ladrões, no mínimo, terem entrado e levado simplesmente, e
com a maior facilidade, tudo o que eu havia conquistado com muito
esforço, inclusive meu carro ― não pude deixar de pensar: “Ainda bem que
perdi aquele voo!”.